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Jorge Amado continua desnudando o Brasil mesmo 20 anos depois de sua morte

Problemas sociais e históricos apontandos na obra do autor baiano continuam a repercutir em país ainda mais complexo

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Fotografia da artista britânica Maureen Bisilliat inspirada na obra de Jorge Amado Maureen Bisilliat/Reprodução/Acervo IMS

Salvador

Vinte anos depois de sua morte, o romancista Jorge Amado tem suas representações do povo da Bahia reconhecidas pelo pioneirismo na abordagem da cultura popular e das religiões de matriz africana. Fenômeno internacional da literatura brasileira, traduzido em 49 idiomas, Amado teve em vida milhões de leitores e o menoscabo de parte da crítica literária.

O escritor baiano morreu em 6 de agosto de 2001, aos 88 anos, em Salvador. Ainda que a popularidade de seus personagens siga intocada, suas heranças literárias são menos reivindicadas por escritores brasileiros contemporâneos.

A força histórica de seus romances, no entanto, parece indiscutível. O romancista Milton Hatoum reconhece a permanência das obras do baiano num país com recaídas autoritárias.

“No Brasil de hoje, as questões sociais e políticas são gravíssimas. Há uma ameaça explícita à democracia, como existia na década de 1930, quando foi instaurado o Estado Novo. Jorge Amado publicou a maioria de seus romances sociais naquele decênio, quando ele foi preso duas vezes, e alguns de seus livros foram censurados e queimados. Hoje, artistas, jornalistas e oposicionistas ao governo são também perseguidos”, afirma Hatoum.

O Brasil se tornou “mais urbano e complexo” sem resolver as questões centrais dos romances “Capitães da Areia” —para o qual Hatoum fez um posfácio, na edição da Companhia das Letras—, “Suor” e “Terras do Sem-fim”. “Jovens e adultos desempregados e sem esperança esmolam ou vendem produtos nas ruas. Moradias populares são precárias, sem infraestrutura e lazer. E a violência no campo, nas cidades e em territórios indígenas tem aumentado", ele acrescenta. "Penso que boa parte da obra de Jorge resistiu ao tempo.”

O legado do escritor se expandiu para territórios condizentes com seu espírito popular. Durante a pesquisa do livro “Jorge Amado: Uma Biografia”, da Todavia, a jornalista Josélia Aguiar se deparou com a insistente busca da imprensa pelo “novo Jorge Amado”.

“Vi que certa vez usaram essa expressão para Aguinaldo Silva, à época um jovem autor de livros que depois tomaria o caminho da teledramaturgia, em que alcançou grande sucesso”, conta Aguiar, diretora da biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.

“Naquele dia me dei conta de que os autores brasileiros de novela, em certa medida, fazem parte dessa tradição literária amadiana, sobretudo em seu compromisso de ter audiência, ainda que Jorge Amado não tenha escrito telenovela.”

Por questionar o eurocentrismo e recorrer a mitologias negro-africanas, Amado se antecipou em décadas à escola do decolonialismo, analisa o poeta e antropólogo Marlon Marcos, professor da Unilab, na Bahia. Esse olhar inovador pode ser encontrado em personagens como o curandeiro iorubano Jubiabá, a transgressora Rosa Palmeirão, de “Mar Morto”, e o funcionário público Quincas Berro d'Água, descrito como um Exu na novela de 1961.

“O movimento negro hoje fala por si dessas questões. Mas, quando não existia a ideia da decolonialidade, Jorge Amado já era decolonial. Ele tratou de temáticas consideradas selvagens e regionais como civilizacionais, prioritárias na história do Brasil”, diz Marlon Marcos. “Jorge Amado inventou uma Bahia fundamentada nas expressões do povo.”

Sua biógrafa o vincula à própria revelação do país. “Na época em que Jorge Amado surgiu e durante toda a primeira metade do século 20, esteve muito presente a questão sobre o que é o Brasil, o que é ser brasileiro e o que é uma arte brasileira. Então ele foi muito contemporâneo e, em certa medida, contribuiu para formular essas ideias de identidade”, afirma Aguiar, que identifica ressonâncias dele no pensamento do ensaísta Luiz Antonio Simas.

Amado ocupou ainda o lugar de escritor exclusivamente dedicado à literatura, algo raro –e inspirador– em sua geração. Em 1998, Itamar Vieira Júnior bateu à porta do romancista em busca de autógrafo num exemplar de “Capitães da Areia”. Convidado a entrar por Zélia Gattai, mulher de Amado, o jovem de 19 anos ficou alguns minutos diante do mito.

No ano passado, aquele garoto venceria os prêmios Jabuti e o Oceanos com o romance “Torto Arado”, novo fenômeno literário. “Li Jorge Amado na adolescência e depois voltei já adulto a alguns de seus livros que mais me impactaram”, conta Vieira Júnior. “Acho que foi um dos escritores definitivos na minha percepção da escrita, com a mesma intensidade que teve o Machado de Assis.”

O autor de “Torto Arado” destaca em Amado sua “escrita simples e direta, algo cada vez mais raro na literatura de nosso tempo, com honrosas exceções”, mas vê incertezas em sua zona de influência. “Ainda não consigo vislumbrar na literatura contemporânea algum legado, até mesmo porque muitos críticos e literatos esnobaram sua literatura, como se fosse incompatível conciliar sucesso comercial e qualidade artística. Mas acredito que este legado ainda está por vir."

Segundo Josélia Aguiar, o romancista temia viradas ultraconservadoras de poder. E nisso estaria mais um acerto histórico. “Agora é mais fácil compreender suas alianças, num esforço para trazer para perto aqueles que ele e seus interlocutores comunistas chamavam de ‘pessoas amplas’. Ou seja, alguém que, não sendo necessariamente de esquerda, tampouco era ultraconservador”, ela diz.

Sua atualidade política também é defendida por Hatoum. “No fundo, Jorge foi um poeta social e um visionário. Inventou personagens comoventes, dotadas de uma imensa solidariedade humana, algo de que precisamos neste tempo tão violento, de extrema miséria social e política."

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