Descrição de chapéu Entrevistas históricas

Muro de Berlim estava 'caindo na minha cabeça', disse Jorge Amado à Folha

Em 1991, uma década antes de morrer, escritor falou sobre sua trajetória no movimento comunista e sobre os autores que admirava

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São Paulo

Além de ser um dos escritores brasileiros mais populares da história, Jorge Amado (1912-2001) foi também um político de atividade intensa.

Em 1932, ele se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual dedicou sua militância durante os anos de Getúlio Vargas no poder. Manteve-se ligado à política durante a clandestinidade e o exílio e, em 1945, foi eleito deputado federal e participou da Assembleia Nacional Constituinte.

retrato em preto e branco de jorge amado sentado em uma cadeira gesticulando; ele veste uma camisa branca aberta e meio transparente
O escritor Jorge Amado, no Rio de Janeiro, em 1984; ele foi membro da Academia Brasileira de Letras e teve seus romances publicados em mais de 60 países, além de ter militado no Partido Comunista Brasileiro (PCB) - Lewy Moraes/Folhapress

Sua aproximação com o PCB ocorreu na mesma época de sua estreia na literatura, com a publicação do romance “O País do Carnaval” (1931). Na década de 1930, o escritor baiano, criado em Ilhéus (BA), entrou em contato com o movimento comunista enquanto cursava direito no Rio de Janeiro.

Sua obra nesse período é marcada pela luta de classes, como o romance proletário “Cacau” (1933), que narra a trajetória de um operário cearense que parte para a zona cacaueira, ao sul da Bahia, em busca de trabalho.

Em entrevista à Folha seis décadas depois, em 1991, a política e sua adesão ao comunismo são os temas sobre os quais Amado mais discorre, além de falar de seu romance nunca acabado “Boris, o Vermelho” ("o desgraçado deste livro") e do processo de escrita de “Navegação de Cabotagem", autobiografia que lançou em 1992.

A entrevista fez parte de uma série especial do jornal, que propunha conversas entre dois jornalistas e uma grande personalidade brasileira. Desta forma, “sujeitas um pouco ao zeitgeist da época”, conta o jornalista Alcino Leite Neto, editor do caderno Letras àquela altura.

“E o zeitgeist naquele momento era a perestroika, a glasnost e o fim do comunismo”, diz ele, que entrevistou Amado ao lado de Marilene Felinto, escritora e colunista da Folha.

Para essa mesma série, eles também entrevistaram os escritores Ariano Suassuna e Rachel de Queiroz. Com Jorge Amado, o comunista best-seller, a forma como conciliou política e literatura ao longo de toda a vida foi o fio condutor da conversa. Em especial, o passado político de “um país sem memória”, como ao final ele chama o Brasil.

Durante a entrevista, Amado narra sua trajetória no PCB, lembra a desavença com Oswald de Andrade e se recorda da amizade com Graciliano Ramos, um dos escritores preferidos de Felinto —foi ela quem quis conversar com Amado sobre o relatório que Graciliano escreveu quando foi prefeito de Palmeira dos Índios (AL).

Há também uma reticência que Leite Neto lembra ser curiosa: quando Amado falava da morte de Stálin, afirmando que o enterraram “rapidamente para evitar…”, raciocínio que ele não concluiu. E os jornalistas optaram por evidenciar este silêncio.

Leia abaixo a íntegra da entrevista com Jorge Amado, republicada agora como parte da série Entrevistas Históricas, que celebra o centenário da Folha relembrando conversas marcantes do jornal.

Nesta quinta, dia 31 de dezembro, faltam 50 dias para que o jornal, fundado em 19 de fevereiro de 1921, complete cem anos.

*

Em 1992, o escritor Jorge Amado completa 80 anos. "Espero estar vivo porque quero receber João Ubaldo Ribeiro na Academia Brasileira", ele brinca. Enquanto João Ubaldo não chega, é Dias Gomes que o escritor vai saudar no próximo dia 16, quando o dramaturgo e telenovelista toma posse entre os acadêmicos.

Jorge Amado prefere não divulgar seu discurso, mas trata-se de uma profissão de fé socialista, feita por este que é um dos mais célebres comunistas do país e o escritor brasileiro mais conhecido internacionalmente.

Todas as suas preocupações parecem se voltar atualmente para aí: o futuro do socialismo. Também sua memória parece ocupada com as recordações dos tempos heróicos do comunismo no Brasil.

Na entrevista à Folha, é principalmente destes tempos que o ex-militante Jorge Amado fala. Mas também conta sobre os livros que está escrevendo, suas aventuras no cinema e um de seus maiores amigos, Graciliano Ramos.

O que o sr. está escrevendo no momento?
Posso te adiantar que comecei um livro que espero publicar no ano que vem. É um livro não de memórias, mas um livro de notas de memórias que eu não escreverei jamais. Vai se chamar "Navegação de Cabotagem".


Qual a primeira "nota" deste livro?
A primeira nota é uma conversa com o escritor Ilya Erenburg, na dacha dele, em Nova Jerusalém, no interior da Rússia. No inverno, em que ele me dizia: "Jorge, nós somos escritores sem memória. Nunca poderemos escrever livros de memória porque as coisas que nós sabemos não podemos contar". Mas quando veio [Nikita] Khruschev [líder soviético que abrandou o stalinismo na URSS] e aquela primeira abertura, ele escreveu sete livros de memórias.

E vou contar... Vivi, por exemplo, uma vida de partido longa, onde uma série de circunstâncias me fizeram tomar conhecimento de coisas porque eu merecia a confiança do partido. Mas não me acho no direito de sair hoje contando o que aconteceu... Ao mesmo tempo, estou escrevendo um romance chamado "Boris, o Vermelho".

É o mesmo livro que o sr. dizia estar fazendo em 84?
É. Tentei escrever o desgraçado deste livro pela primeira vez em 83. Mas ele não estava maduro na minha cabeça. Voltei a tentar mais duas vezes. Estou fazendo a quarta tentativa.


O que é que está impedindo o sr. de terminar?
É o seguinte: este livro tem uma data que é o ano de 1970. Qual é o meu projeto? É uma coisa que eu vivi muito, não por mim mas por meus filhos, que foi o tempo dos hippies, o tempo em que Arembepe, na Bahia, era a capital dos hippies da América Latina.

Pensei em fazer um retrato de um jovem brasileiro naquela época. Só e exclusivamente um jovem brasileiro, sem nenhuma ideia política na cabeça, e que as circunstâncias da vida nacional levam a fazer uma série de coisas que eu ainda não sei quais serão.


De onde vem o nome "Boris, o Vermelho"?
Tudo o que por enquanto sei da história é que a mãe dele é uma costureira de famílias ricas, que lê aqueles folhetins e se apaixona pela vida na corte imperial dos czares e põe nele o nome de Boris.

E o vermelho porque ele é mulato sarará. Quando acontecem as coisas que eu não sei ainda quais são, um general diz: "Boris, o Vermelho —o nome diz tudo". Então, ele é vítima deste nome.

Toda vez que eu tentei fazer este livro, a não ser esta última, a tendência era contar o processo da ditadura. Hoje isto não tem interesse de jeito nenhum. Então, eu quero fazer um pequeno livro que seja o perfil de um jovem e sobre a incongruência das coisas em que ele se vê de repente metido, como bandido e herói.

Na minha concepção, tem um pouco a ver com o mundo atual que vivemos após a queda do muro de Berlim. Tenho 25 páginas de um livro que imagino deva ter cem páginas.


O sr. esteve em Moscou recentemente? O que achou das reformas?
Estive em Moscou pela última vez em 1989. Vi duas coisas terríveis. Uma, que podia haver uma volta para trás. Outra, que poderia haver uma guerra civil. Tive um trauma com isto. Minha pálpebra do olho esquerdo caiu. Voltei de Moscou correndo porque estava certo que tinha um tumor no cérebro. E aí vi que não era nada disso. Vi que era a União Soviética, o Muro de Berlim, aquilo tudo caindo na minha cabeça.

Ao contrário do personagem de seu próximo livro, Boris, o sr. se envolveu voluntariamente na militância comunista e chegou mesmo a participar da Constituinte de 1946, eleito pelo PCB...
Em realidade, nós não fomos eleitos para uma Assembleia Constituinte. Foi eleito um Senado e uma Câmara de Deputados. Quando em janeiro nos reunimos para tomar posse, resolveu-se transformar deputados e senadores em constituintes. O partido tinha feito 16 deputados. O único senador era o Luís Carlos Prestes.


O sr. se adaptou bem ao Congresso?
Eu fui deputado contra a minha vontade porque nunca tive vocação parlamentar. O partido me colocou na lista porque eu já era conhecido e iria trazer votos. Aceitei com a condição de que não exerceria, que renunciaria.


E o partido aceitou?
Eu me lembro que houve uma reunião no Rio e me esculhambaram muito porque diziam que militante não tinha direito de fazer exigência. Mas Prestes interveio e então eles aceitaram.

Eu fui eleito e, quando terminou, escrevi minha carta de renúncia. Eu e Zélia, que estávamos juntos desde o meio do ano, viajamos em lua de mel. Fomos ao Rio Grande do Sul, a Montevidéu e íamos a Buenos Aires. Quando estava em Montevidéu, em dezembro de 1945, recebi um telegrama de Prestes, pedindo que eu voltasse imediatamente. Voltamos, e Prestes mais a direção do partido pediram que eu assumisse em 3 de janeiro.

Houve algum atrito?
Eu aleguei que havia um compromisso e eles me disseram: "Você teve uma votação grande em São Paulo, e uma votação não-comunista grande pelo fato de ser escritor, e para o partido vai ficar muito feio se você não assumir, vão dizer que foi exploração de seu nome".

Finalmente ficou acordado que eu assumiria por três meses. Quando entrei, passei a exercer um papel de certa importância em relação à bancada porque eu me dava com todo mundo. Essa Assembleia Constituinte de 1946 tinha uns 20 escritores, eleitos pelos diversos partidos e estados.


Na Constituinte, o sr. se empenhou numa lei que garante a liberdade de culto, não foi?
Sim. Foi um dos parágrafos de minha autoria. Resolvi fazê-lo porque a perseguição religiosa no Brasil era brava. Hoje, ser de outra religião que não a católica é um negócio ótimo, você até pode ser proprietário de rede de televisão... Eu me lembro que, numa viagem que fiz ao Ceará, o que vi de igreja protestante incendiada era uma coisa séria. Se você falava então em candomblé, religião de origem africana no Brasil, era uma porrada grossa, prisão.

O sr. chegou a militar com Oswald de Andrade?
O Oswald de Andrade estava brigado com o partido na época da eleição. Ele tinha brigado comigo, inclusive.


Brigaram por quê?
Oswald tinha entrado no partido, o que foi um absurdo. Quando ele entrou, eu lhe disse: "Estás fazendo uma tolice". A disciplina do partido era muito dura naquela ocasião e eu disse que seria difícil ele aguentar. Quando houve as eleições, o Oswald queria ser candidato. Lutei muito para que isto acontecesse, mas a direção do partido não o colocou na lista.

Fomos escolhidos eu, Caio Prado Jr., que não ganhou, e José Geraldo Vieira, que era "soi disant" [que se diz] católico. O partido explorava muito o fato de ele, católico, ser membro. Também não ganhou. Monteiro Lobato foi candidato e deixou que usassem o seu nome até certo momento. Um pouco antes da eleição, retirou sua candidatura. O Oswald, então, por intrigas de outras pessoas, achou que eu tinha impedido que ele fosse candidato. Mas foi o contrário.


O sr. escreveu alguma coisa nesta época?
Escrevi "Seara Vermelha". Foi o único livro que estava pronto na minha cabeça. Escrevia pela manhã. Morava numa pequena chácara no estado do Rio, não vivia na capital. Fazia todos os dias uma hora de viagem para ir, uma hora para voltar. Não sei se no meu tempo de deputado eu faltei a dez sessões. Naquele tempo, nós ganhavamos 9.000 cruzeiros —6.000 de ordenado e 100 cruzeiros por sessão. Se você não ia, descontavam. E eu pagava casa, comida, tudo, tudo. Não tinha mordomia de espécie alguma.

Além disso, o partido tomava meu dinheiro todo. Como o partido considerava que eu tinha do que viver, pois era escritor, tinha direitos e tal, me tomava os 9.000 cruzeiros menos 2.000, me tomava 7.000. Com o que sobrava, eu pagava a condução.


E o sr. realmente tinha dinheiro?
Não tinha e foi a única vez em minha vida que eu fiquei devendo a editor. Quando fomos expulsos do Congresso em janeiro de 48, eu devia ao Martins, que foi meu editor por 30 anos, 90 mil cruzeiros. Ele tinha me financiado, todo mês me pagava. Mas como eu só fiz o "Seara Vermelha", só tive direitos deste livro. Eu paguei a ele antes de viajar para a Europa, no fim de janeiro.

O partido me mandou para a França porque se esperava uma perseguição muito grande e tal. Fiquei em Paris até 1950, quando fui expulso da França. Depois, fui para Praga.


Qual foi o motivo de sua expulsão da França?
Não foi só eu. Também Neruda, Carlos Scliar, o pintor... Eu era um representante do partido e atuava em duas frentes. Sobretudo fui um dos dirigentes mundiais do Movimento dos Partidários da Paz, que era um instrumento da União Soviética na Guerra Fria.

O motivo da expulsão foi minha atuação política. Nessa época, não escrevia. Sempre estava lutando para voltar a escrever. Mas o partido ia adiando, adiando. Eu era um elemento disciplinado, sentia que minha atuação tinha algum valor. Quando eu voltei ao Brasil em 1952, comecei a pressionar o partido.


Pressionar como?
Dizia: "Quero voltar a ser escritor etc." Eles sempre respondiam: "Você espera um pouco". Eu sou incapaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo. Além de gostar de uma mulher e escrever, uma terceira coisa eu não consigo, não consegui nunca em minha vida, compreende? Eu devo ser muito limitado em todas as coisas. Para fazer uma coisa que não me diverte tenho que fazer um esforço muito grande.

De forma que só em 1952 eu comecei arranjar de escrever e fiz um imenso romance, "Os Subterrâneos da Liberdade", diretamente influenciado pela minha atividade política.


Foi depois de sua volta que o sr. trabalhou para o cinema no Brasil?
Não, foi antes de eu ir para a França. Como eu contei, estava devendo para o Martins. O partido me disse: "Você vai para a França". Mas não me deu um tostão. Tive que me virar. Fiz de tudo.

Eu sempre tive uma ligação muito grande com o pessoal de cinema. Escrevi muito diálogo para chanchadas. Nunca assinei. Fiz os diálogos para um filme sobre Castro Alves com roteiro de Joracy Camargo e dirigido por Leitão de Barros. Fiz o argumento de um filme chamado "Estrela da Manhã", que tinha o Dorival Caymmi fazendo um pescador.


O sr. chegou também a trabalhar como ator?
Uma única vez. Foi num documentário de 1937 sobre Itapuã, feito pelo Ruy Santos. Naquele tempo, você ia a Itapuã de barco, não havia estrada. Era realmente uma povoação de pescadores. Creio que se chamava "Itapuã". Fiz o argumento do filme.

Tem uma cena em que o Ruy filma um pescador puxando um jumento. Este pescador sou eu. Minha relação com o cinema vem desde 1933, quando a Carmen Santos quis filmar "Cacau" e eu fiquei amigo do pessoal de cinema. Mais tarde, ela quis filmar meu livro sobre Castro Alves com o menino do "Limite".


O Mário Peixoto?
Ele. Trabalhamos juntos, pusemos o roteiro de pé, tudo isso.


Como foi esse trabalho?
A Carmem me chamou, me pagou um dinheiro. Já era o começo do meu mandato de deputado e todo dinheiro era útil. Nós fizemos o roteiro, mas a Carmen não levou adiante. Eu conheci muito pouco o Mário Peixoto. Trabalhamos bem. Era um homem muito gentil, muito educado, muito fino.

Muitos anos depois eu pude ser útil a ele para a publicação de seu romance. Mário começou como romancista. Quando voltou a escrever, falou comigo e eu falei com o Alfredo Machado (editor da Record), que publicou seu livro "O Inútil de Cada Um". Era um homem encantador.


Você conheceu Graciliano através da militância?
Não. Eu o conheci em 1933. Ele tinha sido prefeito de uma cidade chamada Palmeira dos Índios e escreveu uma coisa que ficou muito célebre, um relatório de prefeito que tinha esta frase: "Enterrei cem mil réis no cemitério".

O José Américo de Almeida foi quem trouxe este relatório para o Rio, eu acho. O José Américo foi um homem muito importante no Brasil, infelizmente esquecido, uma espécie de vice-rei do Nordeste após a revolução de 1930.


O relatório então tornou Graciliano conhecido no Rio...
Sim. O poeta Augusto Frederico Schmidt, chamado gordinho sinistro, dono de uma editora de importância fundamental, ao saber que ele tinha um romance pronto mandou um telegrama para Graciliano pedindo o livro. Depois mudaram a história. Disseram que quando o Schmidt soube do tal relatório teria dito: "Este homem deve ter um romance". É mentira. Ele soube da existência do romance no mesmo momento que eu soube por José Américo. Levou dois anos e tanto para publicar. E publicou porque eu, Santa Rosa e Alberto Guimarães lutamos tanto que o "Caetés" é dedicado a nós.

O Schmidt era apoiado financeiramente por alguns homens importantes: Tristão de Ataíde [líder católico, crítico literário e professor], que era um homem rico, Hamilton Nogueira [senador carioca], Tristão da Cunha [político e professor]... Eu era estudante de direito no Rio, vagabundo, e sub-literato. Então, um dia na gaveta do Schmidt eu vejo os originais de "Caetés", em 1932. E me apaixonei pelo livro, gosto até hoje.


Você chegou a escrever sobre "Caetés"?
Não, foi muito mais importante: eu peguei um navio, em 1933, e fui para Maceió, onde ele estava morando. Naquele momento Maceió era um centro literário importante. Estavam José Lins do Rego, paraibano, Rachel de Queiroz, que era cearense, Santa Rosa, muito esquecido hoje, um grande desenhista e ilustrador, que fez a revolução das capas dos livros. Morava aí o Aurélio Buarque de Hollanda, que era um rapaz bonito.

Mas não fui lá para vê-los. Fui para ver Graciliano. E ficamos amigos. Nos encontramos pela primeira vez em um café. Graciliano sempre tomava café numa xícara grande, enquanto os outros usavam a pequena.


A sua amizade com Graciliano terá influenciado no fato de ele se aproximar do partido?
Absolutamente. Depois deste encontro só revi Graciliano quando ele saiu da cadeia, em 1946. Porque veio o negócio de 1935 e ele foi denunciado por inimigos políticos como comunista. Ele nem era comunista ainda. Eu estive preso nesta ocasião, mas nunca coincidiu estarmos na mesma prisão.

Eu estive preso em 1936 na Polícia Central do Rio quase três meses e Graciliano estava na Casa de Correção. O Rubem Braga tinha conseguido fugir. O Moacyr Werneck de Castro também escapou. Mas eu tinha um pijama de listas que tinha levado para a cadeia. Quando saí, estava preso um rapaz, Isnard Teixeira, que agora figurou muito nos jornais num Congresso do PCB, um ortodoxo, e dei a ele o meu pijama. O rapaz foi para a Casa de Correção e correu a notícia que eu estava lá, por causa do pijama. Dizem que Graciliano foi ver.

Fomos amigos fraternos a vida toda. Eu vi Graciliano morrer. Foi na mesma época em que me mandaram vir às pressas do Chile, onde estava para um congresso de cultura, porque tinha morrido Stálin. O partido ia mandar uma delegação a Moscou para o enterro, mas não deu tempo porque enterraram Stálin rapidamente para evitar... Quando eu vim, Graciliano estava morrendo. Foi um amigo muito querido.


O que você tem lido ultimamente?
Atualmente eu releio mais do que leio porque é natural. Quando a gente chega em certa idade, você tem o desejo de reler livros que te disseram alguma coisa. E, por outro lado, o tempo de leitura diminuiu muito. Hoje sou um homem muito mais ocupado do que era antes.


Quem você relê?
Mark Twain eu releio todo o tempo. Releio Charles Dickens, Maupassant, Zola, Gógol, Rabelais, Cervantes.

Não estou dizendo para ser pretensioso, mas porque são coisas que me tocaram, a quem eu devo alguma coisa como romancista. Tem literatura demais no mundo. Eu passo a maior parte do meu tempo na Europa e, de repente, você descobre que há escritores da maior importância que nem sabia que existia.


Você acompanha a produção literária brasileira atual?
Não me aflijo para ler imediatamente. Porque às vezes eu leio e não é bom. Posso dizer que busco acompanhar porque a literatura brasileira me interessa acima de qualquer outra. Mas não é fácil porque há muita coisa. Eu fico esperando. Quando a coisa se assenta mesmo, aí eu leio.

Algo que eu acho muito positivo, primeiro, é o fato de que uma literatura, para que ela se afirme, tem que ter um grande número de autores. Segundo, é esta tendência à profissionalização, que parece que se acentua no Brasil. Houve um tempo em que os dois escritores que viviam disso no Brasil eram só eu e o Érico Veríssimo. Érico, por sinal, está muito esquecido. É uma grande pena. Quando você morre em um país sem memória, imediatamente eles te esquecem. Quando eu morrer, vou passar uns 20 anos esquecido.

Este texto faz parte da série Entrevistas Históricas, que lembra conversas marcantes publicadas pela Folha.

Entrevistas Históricas

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