Descrição de chapéu

Lee 'Scratch' Perry usou tecnologias dos estúdios como faria um cientista

Ícone do reggae morto aos 85 anos concebeu o maquinário das gravações como um instrumento vivo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

GG Albuquerque

Em seu livro "O Atlântico Negro", o pensador da diáspora afro-americana Paul Gilroy defende que "a interface entre ciência e estética" é "o ponto de partida necessário da expressão cultural negra contemporânea".

Poucos artistas sintetizaram tão bem esse cruzamento entre tecnologia e criação artística quanto Lee "Scratch" Perry, morto no último domingo. O jamaicano revolucionou a música ao conceber o maquinário do estúdio de gravação como um instrumento vivo, capaz de gerar novas possibilidades sonoras.

Nascido na cidade rural de Kendal, Perry se mudou para a capital Kingston no início dos anos 1960. Lá, ele se inseriu na efervescência da indústria fonográfica jamaicana, fortalecida pela recém-proclamada independência do país e pelo surgimento do ska e do rocksteady.

Ele passou por vários estúdios, mas antes de assumir o controle da mesa de som trabalhou como zelador, vendedor de discos e caçador de talentos. Mais tarde, entrou em cena como arranjador e letrista fantasma, sem receber créditos e direitos autorais.

O período como operário dos estúdios deu a ele familiaridade com as ferramentas técnicas. No entanto, Perry foi além da execução e repetição de normas estabelecidas e desenvolveu uma visão transcendental sobre o processo de gravação e os significados da arte.

No documentário "Dub Echoes", de 2008, ele afirma que, no estúdio, o artista é um rei e o produtor é um profeta —se comparando, então, ao líder negro Marcus Garvey. Em entrevista ao jornal The Guardian em 2006, Perry afirmou que o que levou à música foi "o amor e a verdade" e definiu seu trabalho como um chamado espiritual de Zion e de Deus.

Nessa busca artística, o jamaicano abordou as tecnologias com o ímpeto exploratório de um cientista. Em "People Funny Boy", de 1968, Perry incluiu choros de bebê usando recortes da fita de gravação —feito que antecede e dá as bases para a técnica de sample, difundida pelo rap e consolidada na música pop. O compacto da música vendeu 60 mil cópias e rendeu a ele o dinheiro do primeiro carro, importado do Reino Unido.

"People Funny Boy" também pavimentou o caminho para aquilo que viria a ser conhecido como reggae. Considerada por muitos uma das primeiras faixas do estilo, ela deu protagonismo ao diálogo entre baixo e bateria, sonoridade que chamou a atenção do jovem Bob Marley e levou Pery a produzir os primeiros discos do The Wailers.

Outra faixa que conta com os hackeamentos e gambiarras de Perry é "Children Crying", de 1977, do The Congos, que tem um famoso som de mugido de vaca —uma marca do produtor, que a repetiu em "Roast Fish & Cornbread", de 1978.

Ele tentou captar o áudio diretamente, mas os animais corriam quando o viam se aproximar com o microfone. Perry então cobriu um rolo de papel toalha com plástico alumínio, deixou um microfone numa ponta e pediu ao vocalista Watty Burnett para "mugir" com sua voz de barítono do outro lado.

Buscando mais liberdade criativa, em 1973 Lee "Scratch" Perry construiu no seu quintal o lendário estúdio Black Ark, onde produziu álbuns seminais do reggae como "Police & Thieves" (de Junior Murvin), "Party Time" (dos Heptones) e "War Ina Babylon" (de Max Romeo).

A espiritualidade o conduziu numa investigação radical do fenômeno sonoro, incorporando sons considerados não musicais e desenvolvendo técnicas inovadoras de gravação. Assim surgiu o dub, música da qual Lee Perry é um dos pioneiros ao lado de outros artistas como King Tubby, Augustus Pablo e King Jammy. O estilo é uma visão lisérgica do reggae, remixado com ambiências sonoras etéreas e esfumaçadas —o som como incenso.

Lee Perry foi o mais radical da turma, realizando clássicos como "Super Ape", de 1976, da sua banda The Upsetters. Suas "dubversões" expandiram os horizontes do reggae ao esculpir paisagens sonoras surrealistas com nuvens de ecos, sirenes, trovões, tiros e vidros quebrando.

Segundo Perry, o gravador não era máquina de registrar o audível que existe entre nós, mas sim um dispositivo que pode ser usado para experienciar outras dimensões da escuta. O cantor Max Romeo já relatou ter visto o produtor gravando sons percussivos de pedras e garrafas. Também é famosa a história de quando ele enterrou microfones na base de uma palmeira e batucou o solo para produzir um som místico de bumbo que captava o "batimento vivo da África".

"Tudo pode ser dub", advertia Perry em várias entrevistas. Porque, mais do que um gênero musical, o dub é uma experimentação contínua de procedimentos artísticos. Uma busca por novos modos de fazer, transformar e remixar o som.

Dub é um pensamento sonoro com uma lógica própria que não reconhece as fronteiras de gêneros musicais (em "Makumba Rock", de 2019, Perry incorporou a cuíca do samba em uma viagem cósmica) e, no limite, cruza até mesmo as divisas institucionais do mercado da arte. O próprio Perry também era um prolífico artista visual e estará na 34ª Bienal de São Paulo com a obra "Laptop from Black Ark", de 2012.

Os procedimentos de remixagem e a concepção do estúdio como um instrumento expressivo afirmam Lee Perry como um revolucionário músico-inventor. O dub e as técnicas do produtor forneceram os alicerces do rap, da música eletrônica, do pop e do funk brasileiro. Seu legado se espalhou pelo mundo ao ponto de se tornar incomensurável. Mas decididamente reconhecível e presente.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.