Descrição de chapéu
Livros

Poesia da pré-história de Roberto Bolaño chega em edição arriscada

Chileno sempre insistiu na raiz poética de sua literatura, mas cabe perguntar se publicação sem cortes vale a pena

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Laura Janina Hosiasson

Professora do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo

A UNIVERSIDADE DESCONHECIDA

  • Preço R$ 99,90 (832 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Roberto Bolaño
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Josely Vianna Baptista

Roberto Bolaño, de infância chilena, juventude mexicana e vida adulta espanhola, é alçado hoje, após a morte prematura, à categoria de mito.

Virou cult para adeptos (entre os quais me incluo) e para fanáticos, e há também, claro, quem o deteste. As traduções em português cobrem muita coisa, muitos dos inéditos e produções iniciais que os herdeiros e novos editores vêm desovando aos poucos.

O título do novo inédito, que ora vemos aqui traduzido, aponta para a ideia de uma rede secreta, não evidente, de vasos comunicantes literários e extraliterários que foram se imbricando na formação do escritor.

A universidade desconhecida do título surge mencionada quase como um fantasma, em vários poemas recolhidos no livro, e Bolaño a transforma também em motivo central de seu romance "O Espírito da Ficção Científica", de 1984, outro inédito publicado postumamente.

Reunindo poesias em prosa e pequenas narrativas, escritas de forma intermitente de 1978 a 1992, este livro é a pré-história do escritor depois que saiu do Chile, do rapaz violentamente poeta que ele foi no México dos anos 1970, onde fundaria com alguns amigos um grupo tardio de poesia vanguardista.

É também o registro do jovem que chegava à Espanha sem dinheiro e sem trabalho, assumindo todo tipo de empregos de subsistência, enquanto escrevia compulsivamente e participava de concursos literários. A maior parte do material já foi publicada em revistas ou livros hoje esgotados, a não ser pela meia dúzia de poemas que fecha o volume.

paisagem rosa com floresta
'Paisagem com Caminho', de Rodrigo Andrade, obra que ilustra a capa de 'A Universidade Desconhecida', livro de poemas de Roberto Bolaño - Divulgação

Embora Bolaño nos primeiros anos na Europa fosse deixando a lírica de lado para se assumir como narrador, ele sempre insistiu na raiz poética de seu fazer literário. Como diz através de um dos seus personagens de "2666", para ele, toda a poesia podia estar contida num romance. A prosa tornaria inteligível o que na poesia é dificuldade.

Estilhaçando as fronteiras entre gêneros, Bolaño fez do seu alter ego o sujeito central de sua obra, numa atitude de introspecção lírica constante. É a partir dessa matriz poética que se organiza sua visão do mundo.

Os bares, os cafés, as saunas dos subúrbios da Cidade do México, assim como os campings e os pequenos povoados da geografia espanhola, comparecem feito lampejos de memória ou fragmentos de sonho, e um Chile quimérico surge e se afasta a todo momento, como ele próprio confessa na “Nota do Autor”, no final.

Nesses espaços se desenvolvem arremedos de situações policialescas vividas ou imaginadas, atravessadas por impulsos eróticos. Como no restante da produção já publicada, reencontramos aqui, a cada passagem, a retomada de núcleos de sentido anteriormente esboçados, a persistência de situações de extrema solidão e pobreza, em que faíscas de sexo e poesia iluminam e dão sentido a tudo mais.

Para apaziguar o frio e encher o estômago do frequentador de cafés com leite e cigarros, estão a leitura e a escrita. Escrita fragmentada que escancara o inacabamento. A impressão é de um recorte de vida, sem começo nem fim, um mergulho no âmago de cenas em andamento, desconstruindo e desorganizando a ordem burguesa rumo a um abismo.

Uma corda bamba em que, na aparência “descuidada”, confluem aspectos vitais e insignificantes, acertos e desacertos poéticos, sendo a soma disso tudo o que interessa e há de mais verdadeiro em Bolaño. Como se o pintor deixasse à mostra os pingos de tinta, os espaços da tela em branco, as sobras de estopa, uma ideia de quanto custa a tarefa, o árduo trabalho de escrever à beira de um risco sempre iminente.

Para sorte dos leitores brasileiros, o livro "Amberes", publicado na Espanha em 2002, ficou de escanteio sem tradução por aqui e, assim, não vão topar de novo com ele intitulado agora “Gente que se Afasta”, ocupando mais de 140 das 823 páginas do volume.

A edição é primorosa. A tradução ficou a cargo da exímia Josely Vianna Baptista e o projeto gráfico é do grande Raul Loureiro. Caberia, no entanto, perguntar se vale a pena uma publicação bilíngue, sem edição nem cortes, de um projeto dessa extensão que o próprio Bolaño abandonou numa gaveta.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.