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Televisão

Novela 'Nos Tempos do Imperador' repete a visão branca de sempre

Produção da Globo perde oportunidade de inovar e representa negros sempre no chavão da subalternidade

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Joel Zito Araújo

Cineasta, autor do livro e filme 'A Negação do Brasil' e doutor em comunicação pela Universidade de São Paulo

A telenovela brasileira parece uma fortaleza inexpugnável diante da modernização das visões de mundo e do avanço da consciência de diversidade racial no campo audiovisual, como atestam as produções do streaming estrangeiro.

E não poderia existir nada mais simbólico que observar esse novo produto chamado "Nos Tempos do Imperador", quando os seus criadores e produtores insistem em voltar com a presença da realeza portuguesa no Brasil.

Mais preocupada em aplicar o conceito fora de lugar de racismo reverso do que em oxigenar nossas mentes com novas leituras sobre o passado, essa produção bate na tecla usual, representando a participação negra naquele período histórico na mesma chave das novelas antecessoras, como escravos ou ex-escravos em posições de subalternidade.

Podemos até considerar que a polêmica cena do racismo reverso foi apenas um vacilo, ou erro grosseiro, conforme admitiu e se desculpou uma das autoras da trama. Mas "Nos Tempos do Imperador" repete o de sempre.

Privilegia o mundo branco do Rio de Janeiro imperial e, mesmo quando destaca o protagonismo feminista, também branco, nada difere do que esse gênero de novela faz desde "A Escrava Isaura".

Consequentemente, favorece um elenco branco e assegura apenas cerca de 20% dos seus papéis para atores e atrizes negras, todos reafirmando uma visão de inferioridade e subordinação da população negra à condição de escravos ou recém-alforriados no final do século 19.

A mais prestigiada produtora americana do momento, Shonda Rhimes, tinha muito menos evidencias históricas quando lançou a audaciosa releitura do competitivo mundo da alta sociedade e da realeza britânica, introduzindo personagens negras em situações de poder e prestígio em "Bridgerton", renovando assim o gênero drama histórico, consagrado por séries como "Downton Abbey" e "The Crown".

A diversidade de elenco e de representação dos negros em um drama que se passa no século 19 se apoiou em evidências até pictóricas de que a rainha britânica Charlotte tinha ascendência africana. Ela descendia de Madragana, a amante do rei Afonso 3º, com quem teve cinco filhos. Mas a distância entre a rainha Charlotte e a amante do rei de Portugal é de 15 gerações.

Eu me pergunto por que o roteiro de "Nos Tempos do Imperador", que tem na trama um casal inter-racial, preferiu ignorar a presença dos influentes e inventivos irmãos negros Rebouças, os dois mais importantes engenheiros da segunda metade do século 19, responsáveis por obras ferroviárias de vanguarda no Paraná e no Rio de Janeiro, na corte de dom Pedro 2º. Ou de abolicionistas como o farmacêutico, jornalista, poeta e romancista José do Patrocínio.

Todos esses, e outros, circulavam de fraque e cartola nos salões da corte imperial. André Rebouças era tão ligado à família real que não aceitou o advento da República e preferiu migrar para Portugal acompanhando a corte e sua amiga, a princesa Isabel.

A novela, ao repetir chavões, perde a oportunidade de inovar, trazendo um outro olhar sobre a complexidade das relações raciais brasileiras que já estavam presentes na abolição.

Ali já existia uma elite negra, e o branqueamento progressivo se tornava, praticamente, a única forma de os afrodescendentes assegurarem respeito e oportunidades para os seus filhos —ambos, José do Patrocínio e os irmãos Rebouças, já eram frutos do processo de branqueamento.

Não parece curioso que o pai da advocacia popular brasileira, o negro Luiz Gama, nunca tenha se tornado personagem da nossa telenovela? Ou José do Patrocínio, o patrono da abolição, nunca tenha sido protagonista?

Não parece também estranho que as telenovelas continuem insistindo no protagonismo branco no período da escravidão, quando todos sabemos que a abolição foi fruto da liderança de intelectuais e ativistas negros? Não será uma forma de assegurar e perenizar um mercado de trabalho cativo voltado para o ator branco nesse tipo de produto?

Resta uma última questão, a mais triste de todas. Será que estou sendo exagerado ao ver pontes entre a visão de mundo de uma minoria do Brasil, que abraçou fanaticamente um presidente que defende até hoje a família imperial portuguesa, e uma visão conservadora e racista que tanto se aproxima daqueles tempos, com autores de telenovelas que ignoram a modernidade do streaming e insistem em representações tão ultrapassadas sobre a presença negra no mundo pré-abolição?

Talvez, nestes dias pós-Sete de Setembro, eu esteja com os nervos à flor da pele. Mas, seguramente, não será mais qualquer beijo de nossa telenovela que voltará a me fazer chorar.

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