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Shakespeare vai de gênio a cancelado em romance que põe sua mulher no comando

'Hamnet', de Maggie O'Farrell, recupera a morte do filho do bardo com Anne Hathaway para falar das origens de 'Hamlet'

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pintura de menino de chapéu com pena escondendo seus olhos

Ilustração que serve de capa para 'Hamnet', de Maggie O'Farrell, lançado no Brasil pela Intrínseca Divulgação

São Paulo

Não era para ser um livro sobre Agnes ou Anne Hathaway, a mulher de Shakespeare. “Quando comecei meu romance sobre Hamnet e sua ligação com a peça ‘Hamlet’, imaginei um livro sobre pai e filho", afirma em entrevista Maggie O’Farrell, a autora de “Hamnet”, que agora está saindo no Brasil pela editora Intrínseca.

“Mas eu não estava preparada para os ataques a Hathaway. Por que, fiquei pensando enquanto atravessava histórias e biografias, somos instruídos a odiá-la? É só misoginia ou existe algo mais em ação? Por que desejamos que o bardo seja infeliz no casamento?”

Existe pouca informação sobre a mulher de Shakespeare e, “apesar disso, ela sempre foi julgada duramente. As provas? Historiadores, biógrafos e críticos recaem nos mesmos fatos —que ele só deixou para ela a ‘segunda melhor cama’ no testamento; que ele tinha 18 anos contra os 26 dela quando se casaram; que o primeiro filho nasceu só seis meses após o casamento”, conta a autora.

pintura de menino de chapéu com pena escondendo seus olhos
Ilustração que serve de capa para 'Hamnet', de Maggie O'Farrell, lançado no Brasil pela Intrínseca - Divulgação

O resultado é uma obra com a versão de Anne Hathaway, que “sequestrou o livro”, no dizer de O’Farrell. Virou uma história em que Shakespeare, embora participe de diversos capítulos, não é citado uma única vez pelo nome, em 379 páginas. Foi cancelado.

“Evitei porque a palavra ‘Shakespeare’ se mostrou muito perturbadora para mim, e eu sabia que seria o mesmo para os leitores”, diz. “Com esse romance, estou pedindo ao leitor que esqueça tudo o que pensa que sabe sobre ele e se abra para uma nova interpretação. É por isso que me refiro a ele como ‘o pai’, ‘o tutor de latim’, ‘o irmão’ e assim por diante.”

A própria opção por Agnes para designar a protagonista, como ela é citada em pelo menos um documento
oficial da época, aponta para uma “nova interpretação”. A mulher de Shakespeare ganha personalidade e características tiradas do nada ou quase —como em seu domínio das ervas, parecendo remeter à Ofélia de “Hamlet”.

Nomes próprios eram tratados então com mais fluidez, daí Agnes, mas também aquele que dá título ao romance. Está em epígrafe no livro —“Hamnet e Hamlet são de fato o mesmo nome, intercambiáveis nos registros em Stratford no final do século 16 e início do século 17”.

É de um ensaio de Stephen Greenblatt publicado em 2004 na New York Review of Books, “A Morte de Hamnet e a Feitura de Hamlet”. O’Farrell queria escrever sobre isso, a morte do único filho de Shakespeare, Hamnet, aos 11 anos, em 1596, e o que levou o pai a lançar uma peça com seu nome, quatro anos depois.

Mas acabou escrevendo antes de mais nada sobre o luto que toma conta da mãe, Agnes. Sobre a depressão. A autora se diz “uma grande fã do trabalho de Greenblatt”, descrevendo sua abordagem de Shakespeare como “de grande rigor e brilho”.

Procurado para comentar “Hamnet”, Greenblatt, autor de “Como Shakespeare se Tornou Shakespeare”, lançado há dez anos pela Companhia das Letras, e professor da Universidade Harvard, enviou outro texto que publicou na New York Review of Books, neste ano.

Nele, faz elogios com alguma condescendência, falando em romance “comovente”. Stephen Greenblatt busca, sobretudo, se distanciar da nova interpretação de Maggie O’Farrell. Aponta para a influência da feminista Germaine Greer, que há tempos critica acadêmicos como ele por suposta desconsideração pela mulher de Shakespeare.

Daí a protagonista de O’Farrell surgir no romance como, afirma ele, “uma mulher forte, vulnerável, solitária e ferozmente independente”.

Por outro lado, Greenblatt ressalta a passagem capital de “Hamnet”, quando Agnes vai a Londres e vê “Hamlet”, no Globe, como uma obra criada pelo marido para resgatar o que podia do filho. O acadêmico concorda afinal com a autora que Shakespeare se valeu de seu luto e dor para escrever “essa peça assombrosa que leva o nome de seu filho”.

mulher branca de cabelos ruivos encaracolados
A escritora irlandesa Maggie O'Farrell, autora de 'Hamnet', é retratada em sua casa, em Edimburgo, na Escócia - Divulgação

O romance tem muito mais, inclusive aquilo que o tornou, inusitadamente, uma leitura de referência na pandemia, ao menos nos países anglófonos.

Lançado no final de março de 2020, quando o coronavírus já se espalhava, trouxe na capa o subtítulo, em letras grandes, “a novel of the plague” ou um romance da peste —que no Brasil mudou para “um romance sobre o luto, a peste e uma das maiores peças de todos os tempos”.

Não existe registro histórico, mas a autora arrisca que Hamnet morreu de peste bubônica. E a certa altura refaz todo o caminho da bactéria até Stratford-upon-Avon, num capítulo de 15 páginas, começando por um macaquinho que passa três pulgas para um menino, no porto de Alexandria.

Hamnet

  • Preço R$ 64,90 (384 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Maggie O’Farrell
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Regina Lyra
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