Descrição de chapéu

'Marighella' sofre com ambição maniqueísta de canonizar personagem

A clareza do diretor Wagner Moura sobre a ditadura não é extensível à ambiguidade moral de seus resistentes

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João Pereira Coutinho

Marighella

  • Quando Estreia na quinta (4)
  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Seu Jorge, Humberto Carrão e Adriana Esteves
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção Wagner Moura

Quando estreou "Marighella" no exterior do Brasil, alguns críticos fizeram comparações entre o filme de Wagner Moura e outras obras que tomavam grandes terroristas como objeto de análise e até de fascínio. Entre elas, está "Carlos", de 2010, de Olivier Assayas, um filme moralmente problemático mas artisticamente notável, com um papel soberbo de Edgar Ramírez.

É uma comparação errada, politicamente falando. A ação de Carlos, o "Chacal", se fazia contra as democracias liberais (ou "burguesas", para usar o clichê marxista-leninista). Carlos Marighella, e em particular a sua Ação Libertadora Nacional que começou a operar a partir de 1967, se fez no contexto da ditadura militar, o que altera a legitimidade da causa.

É possível discutir se os métodos e os fins de Marighella são louváveis ou tenebrosos (pessoalmente, a leitura do seu "Minimanual do Guerrilheiro Urbano" é uma experiência assaz sinistra). O que não é possível é ignorar a natureza do regime que ele combatia.

E, sobre essa natureza, Wagner Moura nos convida para uma viagem inesquecível e infernal, feita de violência e tortura —e entregando ao inspetor Lúcio, assombrosa composição de Bruno Gagliasso, em papel inspirado no delegado Sérgio Fleury, a tarefa "patriótica" de matar os seus semelhantes.

Quando um deles, depois de longamente torturado, ainda grita "vocês estão matando um brasileiro", percebemos melhor como as ditaduras são esse estado de guerra civil permanente em que os nossos compatriotas são vistos como sub-gente a eliminar.

O primeiro mérito político de "Marighella" está em nos lembrar essa verdade, sobretudo no contexto em que o Brasil vive, com um presidente da República que não hesita em desconsiderar a brutalidade do regime militar.

Um descaso que, aliás, não se limita ao presidente. Faz parte do (mau) liberalismo latino-americano a forma como muitos liberais, em nome da ordem e do progresso, relativizam as liberdades políticas como supérfluas ou secundárias.

Infelizmente, a clareza de Wagner Moura sobre a ditadura não é extensível à ambiguidade moral em que viviam os seus resistentes. Para começar, o filme nada nos diz sobre os objetivos de Marighella e do seu grupo, para além do derrube do regime (uma evidência) e da necessidade de promover a "revolução".

É pouco, sobretudo quando essa revolução procurava instaurar no país um regime comunista que, logicamente, era também inimigo das liberdades fundamentais. Se Carlos Marighella, ao contrário de Carlos, o "Chacal", não combateu contra uma democracia pluralista, convém lembrar que também não combateu por ela —uma evidência que é ofuscada pelo tom de "paz e amor" que perpassa o personagem.

Aliás, esse tom é tão delicodoce que até nos esquecemos que a violência não se fazia apenas contra os carrascos do regime, mas também contra os traidores da causa revolucionária, na boa tradição de Guevara.

O máximo a que Wagner Moura se permitiu foi filmar uma discussão tensa, porém misericordiosa, entre dois guerrilheiros no momento do homicídio de um agente americano. Tudo acabou bem porque a amizade é mais importante que a luta, certo?

O filme de Wagner Moura é um retrato importante e impiedoso sobre os 21 anos de ditadura militar no Brasil. Só por isso já merece ser visto.

Mas a ambição maniqueísta em canonizar Marighella, como se ele fosse um pai de santo, não apenas é um desserviço ao próprio —que jamais se apresentou com tais vestes— como ilude uma questão essencial –por que motivo a população brasileira não aderiu ao movimento revolucionário?

A questão é apresentada no filme, mas nunca respondida, exceto com os mecanismos tradicionais da ditadura (repressão, censura etc.). Isso foi importante, ninguém nega; mas a população que não saiu às ruas por Marighella não hesitou em fazer isso quando o momento pedia "Diretas Já".

Não foram as armas que derrubaram o regime. Foi, como deve ser, a vontade soberana de um povo que, entre a Cuba de Fidel ou o Chile de Pinochet, reclamou por uma democracia livre, pluralista e ocidental.

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