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Conceição Evaristo e Alice Walker falam da busca por suas mães na literatura

Escritoras que dividem mesa na Flip debatem as raízes e o cultivo da cultura negra nas artes

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Ilustração que estampa a capa de ‘Em Busca dos Jardins de Nossas Mães’, que Alice Walker publica pela Bazar do Tempo

Ilustração que estampa a capa de 'Em Busca dos Jardins de Nossas Mães', que Alice Walker publica pela Bazar do Tempo Divulgação

São Paulo

No ensaio "Em Busca dos Jardins de Nossas Mães", Alice Walker descreve sua peregrinação para encontrar as manifestações criativas de suas ancestrais. Se era tão difícil encontrar obras de mulheres negras em bibliotecas e museus, isso não podia significar que não havia criatividade nas gerações antigas. Onde estava essa arte?

Descobriu que "a resposta mais verdadeira para uma pergunta que realmente importa pode ser encontrada muito perto". "É comum olharmos para o alto, quando deveríamos ter olhado para o alto e também para baixo."

Descendo os olhos para a altura das mãos, ela pôde enxergar as flores que sua mãe cultivava. As plantas que brotavam como mágica, os jardins onde ela organizava "o universo à imagem de sua concepção pessoal de beleza".

"Era impossível competir com ela na jardinagem", afirma a escritora de 77 anos a este repórter. "Nos meus anos de auge, meu próprio quintal era magnífico. Quando eu pude comprar terras onde plantar, a saúde de minha mãe já declinava, então ela nunca viu o reflexo do seu dom nas minhas plantas exuberantes."

"Minha mãe viu, contudo, seu reflexo em ‘A Cor Púrpura’, um filme que considero que foi feito só para ela", conta, sobre a adaptação do romance que a transformou na primeira mulher negra a vencer o Pulitzer, em 1983. "Ela nunca tinha visto representada na tela uma vida que nem vagamente se parecia com a sua. E quando viu que era possível se afirmar na arte do cinema, ela chorou e sorriu."

Conceição Evaristo, expoente da literatura que também é leitora de Walker —e divide com ela uma mesa da Flip, neste sábado— identifica com a americana um compromisso literário em comum: a busca pelo direito de significar.

"Sua procura é a mesma de muitos textos nossos. Pensar a literatura a partir da nossa própria perspectiva, tomando como paradigma a postura das nossas mais velhas. E perceber como essas mulheres faziam a teoria na prática."

Essa elaboração vinha na forma de um provérbio, uma frase, uma arte que se manifestava nas colchas de retalhos das mulheres americanas ou nas toalhas de fuxico feitas no interior de Minas Gerais.

"Em Busca dos Jardins de Nossas Mães" é um conjunto de ensaios sobre a procura de Walker pela arte e pela identidade negra, uma jornada cheia de frustrações e descobertas que serviu de impulso para que ela própria se tornasse uma das maiores escritoras dos Estados Unidos.

Era uma fonte constante de incômodo, para uma jovem Alice Walker que militava no movimento pelos direitos civis e elaborava o conceito de mulherismo, que houvesse tão poucos registros escritos da cultura negra. Num dos ensaios, ela leva uma frase célebre de Toni Morrison a outro patamar. "Eu não escrevo apenas o que quero ler. Escrevo também todas as coisas que deveriam estar disponíveis para que eu pudesse ler."

"O que artistas e escritores negros oferecem é um vislumbre de um espírito que foi negado e, muitas vezes, ridicularizado por séculos" afirma a autora agora. "Mas enfim a humanidade como um todo pode ver a beleza da cultura negra, se relacionar com o soul de Miles Davis, as tragédias de Toni Morrison, as pinturas de Romare Bearden, as histórias de Zora Neale Hurston."

Hoje, a literatura negra é lida de forma bem mais abrangente do que há 50 anos, época em que Walker escreveu seus ensaios —inéditos em livro no Brasil até este ano. Para explicar o que mudou, ela afirma que as pessoas perceberam que havia um mundo maior do que aquele em que foram criadas.

"Os negros nunca vão a lugar nenhum sem levar presentes. Isso sempre pareceu mágico para mim", comenta. "Não importa quão pobre você seja, sempre traz algo especial para a mesa. Uma música, uma dança, uma reza. O comunalismo é a nossa natureza. Mesmo que com frequência eu esteja contente em ser solitária, fico atraída por esse poder de visão e ação coletiva."

Também dá para notar mudanças de prazo bem mais curto. A Flip de que Conceição Evaristo participa agora acontece num Brasil que lê mais autores negros do que quatro anos atrás, quando a curadoria de Joselia Aguiar —que a escritora chama de "mulher coragem"— decidiu montar uma programação afinada a reivindicações do movimento negro contra a branquitude histórica da festa.

"Aquela Flip não só foi boa para a autoria negra como para o público. Foi uma espécie de reinauguração da Flip", diz. Hoje é muito difícil imaginar um evento literário que não evidencie autores negros, ou um mercado editorial que ignore essa demanda já bem sedimentada do leitorado.

Mas tudo foi puxado pelo que Conceição chama de "um núcleo muito particular de recepção", os leitores negros, que levam os nomes uns dos outros adiante.

É aquele senso de comunidade que Walker elogia, em pleno funcionamento, e ele serve tanto para os contemporâneos como para gerações passadas. Repetir gestos de mães e avós não é só um posicionamento literário consciente para essas autoras, mas algo inescapável.

A mãe de Conceição Evaristo morreu há pouco mais de um mês, aos 99 anos. De velhinha, como diz a filha de 75 anos. A escritora passou boa parte da pandemia atenta aos cuidados da mãe, na cidade mineira de Igarapé, e voltou à sua residência carioca poucas semanas atrás. Não veio sozinha.

No retorno de Minas, ela deparou com um punhado de malmequeres, uma florzinha parecida com a margarida que era muito comum em seu tempo de criança, quando sua família vivia numa favela de Belo Horizonte e o ato de plantar misturava prazer com subsistência. Conceição trouxe um monte de sementes —e quer espalhar a sua infância por todo canto do Rio.

EM BUSCA DO JARDIM DE NOSSAS MÃES

  • Preço R$ 69,90 (376 págs.)
  • Autoria Alice Walker
  • Editora Bazar do Tempo
  • Tradução Stephanie Borges
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