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Artes Cênicas

'Língua Brasileira' escancara o totalitarismo do Brasil de Bolsonaro

Com músicas de Tom Zé, peça esquadrinha os dois lados do português, o que oprime e o que liberta

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Noemi Jaffe

Língua Brasileira

  • Quando Qui. a sáb., às 20h; dom., às 18h. Até 20/2
  • Onde Sesc Consolação, Teatro Anchieta, r. Doutor Vila Nova, nº 245
  • Preço R$ 40,00 (venda de 4 ingressos por pessoa)
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Amanda Lyra, Danilo Grangheia, Georgette Fadel, Laís Lacôrte, Pascoal da Conceição e Rodrigo Bolzan
  • Direção Felipe Hirsch
  • Autores Ultralíricos, Felipe Hirsch, Juuar e Vinícius Calderoni, com dramaturgia de Caetano Galindo
  • Música e letras Tom Zé

Numa peça de teatro, estamos habituados a ver atores interpretarem personagens. Em "Língua Brasileira", entretanto, o que vemos são atores não exatamente representando, mas sendo palavras, textos, ou ainda uma babel de línguas e, como corolário, a própria língua brasileira, composta de tantas outras línguas, dialetos e jargões.

Numa colagem rapsódica de textos, canções, peças, danças e gestos, o espetáculo segue em ordem cronológica. Começando pelas origens do português europeu e brasileiro –línguas indígenas, grego, latim, árabe, celta, português arcaico e outras–, a peça chega até José Agrippino de Paula e Haroldo de Campos, entremeada, a intervalos, por canções compostas por Tom Zé especialmente para a apresentação.

Tom Zé, Felipe Hirsch e o coletivo Ultralíricos se juntam para narrar a epopeia da 'Lingua Brasileira' - Eduardo Knapp/Folhapress

Todos interpretam tudo, rum rodízio aberto, como se fossem as línguas a circular entre os atores, estacionando ora num e ora noutro, que, por sua vez, se transformam em porta-vozes de palavras. Ao fundo e no chão, telas com nebulosas de letras crescem e diminuem, formando um céu de possibilidades verbais, mais ou menos alvissareiras, conforme a circunstância. Aos poucos, quase sem perceber, também o espectador se vê enrolado numa trama de textos que vão contando, gradualmente, não somente a história da língua, mas também as histórias de opressão que necessariamente a acompanharam.

E não é sem surpresa que, após participar de uma brincadeira hilária de repetição de sílabas, o espectador se dá conta de que caiu numa cilada semelhante à que iludiu indígenas nos primeiros anos da colonização. É como se a história do desenvolvimento do português brasileiro fosse a própria história dos povos e etnias que por aqui aportaram, sendo subjugados e enganados. Por outro lado, as canções de Tom Zé vão, também paulatinamente, apontando para potências de sublevação, até que as coisas possam culminar em raiva ativa e criativa.

É igualmente impressionante o trabalho dos atores na memorização e precisão dos sotaques, todos orientados por especialistas das mais diversas línguas, desde as ocidentais até as indígenas. Com consultoria geral de Caetano Galindo e direção de Felipe Hirsch, a peça contou com a colaboração de mais de 30 profissionais para chegar ao resultado que, tendo assistido à peça duas vezes, posso dizer que nunca é final.

Em textos que vão de uma pichação encontrada nos muros de Pompeia, passando pelo poeta medieval Martin Codax, mitos indígenas brasileiros, poemas em árabe, até a apoteose delirante de José Agrippino de Paula em "Panamérica", o espectador-ouvinte-leitor deriva por tempos e espaços, testemunhando o nascimento, o desenvolvimento e a explosão orgástica de uma língua que se presta tanto a oprimir como a libertar.

No ato de combinar aquilo que é aparentemente inconciliável, como, por exemplo, Olavo Bilac e Haroldo de Campos, ou uma peça didática e catequética e Luís de Camões, a sensação é a de que é a mistura que permite a vivacidade de uma língua que não cessa de mudar.

Nas favelas, nos morros, na academia, nas igrejas, nos terreiros, "Língua Brasileira" trabalha antropofagicamente, reunindo não só textos, mas música e movimento, para formar um painel ativo da história passada e, por que não, também da história futura desse Brasil agora tão adoecido pelos ensaios totalitários sob os quais temos vivido.

A língua é nosso casulo e casca, o equivalente aos cheiros e líquidos expelidos por plantas e animais. Como com eles, ela pode nos proteger, nos identificar, pode seduzir e até matar. Por outro lado, também pode ser alvo de ataques e injustiças.

Muito depende do acesso às suas várias formas e usos e a peça "Língua Brasileira", se não soluciona, aponta alguns caminhos possíveis.

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