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'Viagem pelo Fantástico', fotolivro inovador dos anos 1970, ganha nova edição

Fotógrafo Boris Kossoy criou um universo surreal com imagens em preto e branco de alto contraste

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São Paulo

Numa certa manhã alguns meses antes da pandemia, Boris Kossoy avistou entre arbustos uma figura vestindo um manto preto e uma máscara em formato de bico de pássaro, do tipo usado pelos médicos europeus durante a peste negra na tentativa de se proteger da doença. A neblina da região costeira de Florianópolis dava à cena, registrada por ele numa imagem, um ar de mistério.

"Os médicos punham aquilo para não chegar muito perto do paciente, mas todos foram infectados pela peste, como hoje todo mundo está sendo infectado por essa coisa", diz o fotógrafo, se referindo tanto à pandemia que matou um terço da população da Europa durante a Idade Média quanto à atual. "Ele [a figura de manto preto] era um médico."

Il Dottore (da série Viagem pelo Fantástico), Açores, Flps, SC, 2019
'Il Dottore', da série 'Viagem pelo Fantástico', realizada em Florianópolis, em 2019 - Boris Kossoy

A imagem é uma adição recente à série "Viagem pelo Fantástico", uma coleção de fotos que Kossoy, um dos principais fotógrafos e teóricos da fotografia no Brasil, vem produzindo desde o final da década de 1960. Ele lembra a cena durante uma conversa sobre o livro de mesmo nome, que ganha agora uma edição comemorativa de 50 anos, reproduzida igual à versão original, publicada pela primeira vez em 1971 e esgotada há décadas. Esta é a primeira reedição da obra.

Inovador na forma e no conteúdo à época de seu lançamento, o fotolivro "Viagem pelo Fantástico" traduz em fotografias em preto e branco o universo do realismo fantástico latino-americano de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares e das histórias de mistério de Sherlock Holmes e Agatha Christie. A obra é organizada em dez séries de imagens, que o autor chama de "contos fotográficos", e as fotos não têm legenda —há só um título no início de cada capítulo. Criar uma narrativa a partir do que se vê é trabalho do espectador.

No livro, vemos fotos encenadas de uma noiva solitária numa estação de trem, uma figura fantasmagórica saindo de dentro do mar, um casal dançando no salão vazio do aeroporto de Congonhas e um arlequim à beira de uma estrada de chão onde não passam carros. O clima é de estranheza e perturbação, dado que Kossoy insere elementos inesperados em ambientes corriqueiros.

Hoje com 80 anos, o artista é conhecido por "imaginar esse mundo misterioso, esse mundo que acontece independentemente da nossa vontade, as coisas que a gente não percebe", afirma. Na criação de seu universo particular, ele usa um preto e branco de alto contraste, deixa algumas imagens granuladas e, com os químicos empregados para revelar e ampliar fotos, ressalta determinados elementos nas cenas.

Kossoy credita à sua criação num sítio em Guarulhos, na década de 1940, parte de seu interesse pelo fantástico. Mais tarde, já pré-adolescente, ficou fascinado por uma reportagem na revista O Cruzeiro sobre um óvni visto na cidade do Rio de Janeiro —ele chegou a tentar reproduzir o disco voador, empilhando fichas de um jogo de botão, que em seguida usou numa de suas primeiras fotografias. Sua apreensão da possibilidade de criar narrativas com imagens veio das revistas em quadrinhos e do cinema. Tudo isso "muito antes do 'Estranho Mundo de Zé do Caixão'", brinca ele.

Mesmo tendo três fotografias suas incorporadas ao acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York pouco antes de lançar "Viagem pelo Fantástico", Kossoy conta que seu trabalho era um tanto incompreendido por aqui. "O pessoal que menos entendia eram os fotógrafos. Eu recebia perguntas tipo ‘por que que você faz essas coisas?’, como se fosse um pecado."

"Porque eu estava desafiando um monte de dogmas. A fotografia [na época] era fotojornalismo, fotografia publicitária ou a fotografia de arte trabalhada nos fotoclubes", ele relata, acrescentando que ter obras na coleção do museu americano, um dos principais do mundo, deu a ele confiança para seguir com o trabalho autoral. Kossoy chegou ao MoMA por intermédio de Pietro Maria Bardi, então diretor do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, que assina o prefácio de "Viagem pelo Fantástico".

Embora o livro não tenha sido feito com uma agenda política em mente, Kossoy afirma que o golpe militar de 1964 aparece na obra de alguma maneira, pois suas fotografias refletiam o momento, "o ambiente sombrio da ditadura", com os traumas e dúvidas existenciais que provocava. Sem ser muito específico, ele sustenta que o político está nas sutilezas do livro, como nas imagens de manequins e na fotografia de um maestro regendo túmulos num cemitério, uma de suas mais conhecidas.

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'O Maestro', da série 'Viagem pelo Fantástico', de 1970 - Boris Kossoy / Divulgação

Nenhuma de suas fotos foi censurada durante a ditadura, num momento em que outros trabalhos de menor intensidade eram proibidos de circular. "Tem mais uma coisa importante —tem certas imagens que ultrapassam os tempos. A minha imagem do maestro é atemporal, e ela pode ser em qualquer lugar, pode ocorrer na Finlândia, em Havana", ele diz, acrescentando que o espectador lê o que quer nas imagens e as interpreta de acordo com seu repertório.

"O livro não parou só no político porque eu achei que ia passar, né? Mas não passou, chegou até hoje e está cada vez pior."

Viagem pelo Fantástico

  • Preço R$ 150 (96 págs.)
  • Autor Boris Kossoy
  • Editora IpsisPUB
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