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Livros

Elena Ferrante, em novo livro, é a personagem de seus próprios escritos

Antologia de textos curtos é quase como um romance epistolar em que a protagonista vai se apresentando aos poucos

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Fabiane Secches

"Que tipo de diário eu gostaria que fosse o meu? Algo tecido como uma malha frouxa, mas não desleixada, tão elástica que abrace qualquer coisa, solene, leve ou bonita, que venha à minha mente." Assim escreve Virginia Woolf, no seu diário, em 1919, definição perfeita para dar conta do que é, afinal, esse gênero literário tão específico, o de diários de escritores.

Diferentemente dos diários comuns, em que o tom confessional e a ideia de depósito de segredos costuma prevalecer, os diários de escritores são espaços de experimentação estética, de criação e recriação da realidade. Ou seja, mais do que comprometidos com os fatos guardados, estão interessados no que podemos chamar de busca pela "verdade" da escrita.

Faço essa breve introdução para apresentar o novo livro de Elena Ferrante, "I Margini e il Dettato", publicado no final do ano passado pela editora Edizioni E/O, mesma casa responsável por toda a sua obra na Itália —tanto a de ficção, quanto a de não ficção. Mas, com Ferrante, essa equação se complica e a distinção não é tão rígida. Já voltaremos a isso.

capa de livro
Capa da edição italiana de 'I Margini e il Dettato', de Elena Ferrante, autora da tetralogia napolitana cuja identidade real é desconhecida - Reprodução

O novo livro é uma antologia de textos com poucas páginas —no original, apenas 160— e muita densidade. Já saiu em Portugal com o título "As Margens e a Escrita". No Brasil, deve sair em breve pela editora Intrínseca, embora não haja confirmação de lançamento.

Ainda há um outro livro inédito no Brasil, classificado como de não ficção, escrito pela autora –"L’Invenzione Occasionale", lançado na Itália em 2019, e em Portugal no mesmo ano, como "A Invenção Ocasional". O livro é uma coletânea de textos publicados no britânico The Guardian, quando Ferrante foi colunista do jornal. Essas colunas, que poderiam ser lidas como ensaios ou crônicas, de outro lado, também poderiam ser lidas como contos. Sustento essa hipótese porque, de forma mais radical, Ferrante ficcionaliza mais do que o próprio nome, mas também a própria vida.

Em "Frantumaglia: Os Caminhos de uma Escritora" —outro de seus livros que dialogam com essa categoria híbrida—, a autora evoca Italo Calvino para afirmar que estaria livre para criar respostas às entrevistas concedidas, à sua própria maneira —embora tenha dito também que não se sente à vontade em responder a uma pergunta com uma "cadeia de mentiras".

Mas, se estamos no campo da ficção, podemos dizer que não se trata de mentir. E muitas vezes é nas malhas da ficção que se encontra a possibilidade de dizer algo mais próximo da verdade, como preza a psicanálise. Isso é muito diferente das fake news, já que as notícias estão fora do campo da arte e, portanto, possuem outro rigor de informação e checagem.

"I Margini e il Dettato", como menciona a editora italiana, reúne quatro textos inéditos de Ferrante sobre sua própria "aventura de escrita", bem como a de outros escritores. São três "master classes" das conferências de Umberto Eco, realizadas em Bolonha, e também um ensaio composto para o encerramento de uma conferência sobre Dante e outros clássicos. A partir desses lugares da chamada "alta cultura", a escritora propõe uma fusão coral de talentos de mulheres.

Nas entrevistas concedidas por escrito, nos ensaios e outros textos publicados em diversos veículos, Ferrante está sempre romanceando a própria vida, utilizando essas outras plataformas como instrumento para isso. É como se acompanhássemos um romance de natureza epistolar em que a protagonista, uma personagem que é escritora, Elena Ferrante, vai se apresentando aos poucos, bem como contando suas peripécias. Cria uma história de vida, que provavelmente não corresponde, com precisão factual, à biografia da pessoa que assina com o pseudônimo.

Como bem disse Woolf, o que Ferrante parece se autorizar, e mesmo a buscar nesse projeto paralelo, é mais do que discutir teoria literária e feminista —embora sejam temas recorrentes e caros a ela. É a tal malha frouxa, mas não desleixada (nunca desleixada), elástica a ponto de abrigar toda a riqueza que Ferrante tem a compartilhar conosco, como autora-personagem que é.

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