Descrição de chapéu
Livros

'Eu que Nunca Conheci os Homens' é distopia com moças em porão

Livro de Jacqueline Harpman tem uma trama que questiona do que é feita a dignidade humana

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Yasmin Santos

Eu que Nunca Conheci os Homens

  • Preço R$ 59,90 (192 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Jacqueline Harpman
  • Editora Dublinense
  • Tradução Diego Grando

Trinta e nove mulheres e uma menina estão presas em um porão. Não se sabe como lá chegaram nem por quê. Vestem trapos, excretam em público, não veem a luz do dia. Do outro lado das grades, homens as observam com seus chicotes. Não é permitido qualquer tipo de toque entre elas. O choro nem a insônia têm lugar. Muito menos o suicídio. Sem espelhos, não conhecem nem sequer os próprios rostos.

"Eu que Nunca Conheci os Homens" é uma distopia árida. O livro é narrado pela mais jovem das prisioneiras, que chegou ao porão ainda criança. Ela é a única que não tem lembranças da vida pré-apocalíptica, não sabe nem o próprio nome –as companheiras a chamam de pequena. Carrega características únicas, que não consegue compartilhar com ninguém e que implicam uma sensação particular de solidão. Até mesmo no que poderia unir todas do sexo feminino, a pequena desconhece –de seu útero nunca saiu sangue algum, nem mesmo na maturidade.

Ilustração para a capa do livro "Eu que Nunca Conheci os Homens", de Jacqueline Harpman
Ilustração para a capa do livro 'Eu que Nunca Conheci os Homens', de Jacqueline Harpman - Divulgação

Uma sirene então ressoa no momento em que os guardas abrem a jaula para alimentar as presas. Os homens fogem, e é a pequena que guia as mulheres para fora. Saem em busca de algo inominável. As mulheres caminham sem saber para onde nem por quê. Encontram outros porões, com cadáveres empilhados. Elas se sentem como parasitas daqueles que as confinaram –entram, velam os mortos e tomam a comida estocada.

Neste romance –publicado pela primeira vez em 1995 e que chegou ao Brasil no ano passado–, Jacqueline Harpman nos questiona do que é constituída a dignidade humana, numa trama tomada pelo sentimento de existir depois do fim.

Uma cena muito impactante para a protagonista é quando ela se depara com um corpo de um homem que, ao ver seus companheiros morrerem tentando arrombar a cela e certo de que uma hora ou outra morreria de fome, juntou um par de colchões à parede, se sentou e aguardou o fim. Anos depois, a estrutura que construiu para manter seu corpo ereto ainda mantinha aquele cadáver altivo, repleto de dignidade, apesar do cheiro pútrido e de sua deterioração.

A menina cresce com uma espécie de aversão ao contato humano, mesmo após a liberdade. É, no entanto, o afeto que conduz a trama. O livro se inicia com ela no fim da vida, só, registrando o que ocorreu na expectativa de que alguém encontre seu relato e já nas primeiras páginas ela declara "minha memória começa com minha raiva". Ora, a feminista Audre Lorde já nos alertou sobre os usos da raiva pelas mulheres, capaz de gerar movimento.

Curioso pensar que, apesar de deterem o controle, os homens não têm voz na trama. Se comunicam pelo estalo do chicote. As mulheres, por outro lado, falam e muito, mas nunca sobre o que importa. "E para que serve falar disso? Não vai mudar nada", ao que a pequena rebate –"Falar é existir. Preste atenção: elas sabem disso tão bem que ficam falando por horas para não dizer nada".

Nascida em 1929 e morta em 2012, Jacqueline Harpman foi uma escritora e psicanalista belga de origem judaica. Em suas obras, a busca de suas protagonistas por um outro é comumente interpretada como uma metáfora sobre a Bélgica, uma nação cultural, geográfica e linguisticamente dividida. Em "Eu que Nunca Conheci os Homens", os elementos prisionais também nos remetem aos campos de concentração e discutem o que nos torna humanos.

As palavras de Clarice Lispector, em "Perto do Coração Selvagem" –"Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome"– ressoam na protagonista. Ela segue a trama em busca de algo inominável, porque desconhecido por ela. A liberdade que almejava não é suficiente. Ela, que nunca conheceu os homens, o gozo, a dor, o amor, quer mais.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.