É preciso um pouco de paciência para apreciar "A Pior Pessoa do Mundo". O filme de Joachim Trier se transforma a cada um de seus capítulos —são 12, mais um prólogo e um epílogo—, no que se parece um pouco com Julie, sua protagonista.
Julie deixa a impressão, a princípio, de ser só uma garota que não sabe o que quer. Passa da medicina para a psicologia, daí para a fotografia. Talvez todo mundo seja um pouco assim a certa altura da vida. Não pela indecisão, mas justamente pela capacidade de se transformar, de se ver em outra pele, de se imaginar vivendo outras coisas.
Para o bem e para o mal, as coisas parecem se estabilizar quando ela passa a viver com Aksel, um autor de quadrinhos underground bem mais velho do que ela —é o que ele diz, embora as imagens não sejam muito claras quanto a isso.
Não demora muito para "A Pior Pessoa" criar a impressão de que está administrando a herança do dramaturgo August Strindberg, que dita que, na relação interpessoal, todos devem a todos. A paixão, que em Julie surgiu repentina, não desaparece de repente, mas arrefece. Estamos no século 21, não mais no 19 da virada para o 20 do autor sueco, afinal. As insatisfações podem continuar sendo mútuas, mas hoje a mulher tem desejos e direitos, e Julie está entre elas.
Do arrefecimento à insatisfação é um pulo. Desse pulo consta o desejo de Aksel de ter um filho, o que Julie busca evitar. Subtexto —Aksel sabe quem é e o que quer. Julie, nem tanto. Surge então um encontro quase ao acaso, em que a rigor ela o procura, entrando de penetra numa festa, e uma bela cena de sedução mútua entre Julie e Eivind. Talvez seja a melhor sequência do filme.
Não importa o que acontece. A partir daí, o filme se torna mais vivo. No entanto, é possível notar que o personagem de Eivind introduz um problema grave na dramaturgia. Ele está lá, mas, ao contrário, de Julie e Aksel, não sabemos quem ele é. Num filme de basicamente três personagens, um deles está lá apenas para servir de escada a Julie. Sintomaticamente, entramos em um beco sem saída, que desemboca numa sessão de LSD em que Julie tem uma espécie de "bad trip", que no entanto é também um acerto de contas, com o pai dela em especial.
Algum tempo depois, entramos no que parece ser o cerne do filme. Talvez o nosso mundo seja abstrato demais, rápido demais para todos. Aksel representa, de certo modo, o mundo antigo, o dos livros, que supõe algo mais concreto a que nos apegarmos. Já a instabilidade de Julie representa um mundo onde as coisas surgem e desaparecem em pouco tempo, e nas quais não tocamos —como os livros do Kindle, por exemplo.
O mal-estar da civilização sobre o qual Freud escreveu e que dá título a um dos capítulos ilustra bem essa ideia —que, por sinal, não nos chega por meio de Julie, mas na disputa entre Aksel e uma ultrafeminista que ataca seus quadrinhos. É nesse mundo que parece pensar Joachim Trier —um em que nos promete a liberdade total, a ausência de censura completa, até que caímos em nós mesmos e descobrimos que nenhuma liberdade é completa, que o palavreado da liberdade, tanto quanto o da correção política, esconde um mundo de restrições e não ditos.
O caminho que Trier trilha para chegar a esse ponto chega por vezes a ser árido, construído sobre a busca de um cinema em que a psicologia tem um papel importante, a história tem começo, meio e fim, os atores são bem dirigidos.
Ao mesmo tempo, tudo parece tão em seu lugar —as ênfases sobretudo, como o uso de contraluz em determinados momentos, reduzindo as personagens a sombras, quando certas coisas vão mal— que por vezes tornam a experiência do filme, tateante, e a do espectador, monótona. Em todo caso, não estéril.
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