Ayrson Heráclito fala de dor e cura com roupas de carne e ferro em brasa em mostra

Exposição traz mais de 60 obras do artista e trabalhos que reivindicam o lugar do negro na cultura brasileira

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Fotografia do rosto de um homem negro, que tem esferas amarelas grudadas no lábio, no ouvido e nas sobrancelhas

'Piercing Pérola 1', obra de 2005 de Ayrson Heráclito Divulgação

São Paulo

Açúcar, charque e azeite de dendê. Desde os anos 1990, esses três materiais orgânicos constroem o conceito do corpo de um homem afrodiaspórico e, sobretudo, afro-brasileiro nas obras de Ayrson Heráclito. São componentes, segundo o artista, que contextualizam o que são e como se formaram esses sujeitos.

Agora, eles também organizam a apresentação do trabalho de Heráclito na mostra "Yorùbáiano". "Essa mostra é iniciática, propõe uma iniciação não só ao meu universo enquanto artista, mas a um sistema de pensamentos e conceitos que inauguram uma forma de fazer e pensar a arte brasileira", afirma ele.

A exposição, que reúne mais de 60 obras e performances do artista, foi pensada para o Museu de Arte do Rio no ano passado e chega neste sábado à Estação Pinacoteca, em São Paulo, com organização de Amanda Bonan, Ana Maria Maia e Marcelo Campos.

As barras de rapadura ali são cristalizadas em blocos de resinas e cartas de alforria ganham rostos de sujeitos que foram esquecidos nas obras que marcam a pesquisa dele em torno do açúcar. Surge nos trabalhos uma tensão do que é preservar a memória dessas matérias orgânicas que marcam a história do Brasil, mas que também estão fadadas à decomposição —assim como os próprios corpos que sofreram com a escravidão.

"Esses trabalhos se relacionam diretamente com o primeiro processo de construção desses corpos na vinda forçada de africanos escravizados ao Brasil", afirma o artista baiano. Eles indicam também o começo de uma paisagem predominante, a da monocultura açucareira.

As histórias que ele retoma numa estrutura visual, ainda que tenham uma roupagem de história com "H" maiúsculo nas documentações das cartas, nada têm de página virada. "A ideia é apresentar aqui os vários itens que compõem essa documentação para que a gente tenha sempre na cabeça o quanto nossa história produz dor e sofrimento, sobretudo para as populações pretas brasileiras", diz. "A dor tem que ser estetizada, mas nunca deve ser esquecida."

Não é só reviver a brutalidade da escravidão, no entanto, o que Heráclito faz nas obras. As marcas de ferro quente com as insígnias de senhores de engenho em roupas de charque que ele faz no projeto "A Transmutação da Carne" são seguidas de um choro. Não é um choro de dor, diz ele, mas sim um que "lava a nossa memória com água e sal, elementos de depuração e limpeza".

O processo de cura está também presente em performances em casas de senhores de engenho, por exemplo, e ainda numa obra em que a água salgada parece sustentar um grande bloco de azeite de dendê —que é também o sangue, o sêmen e a saliva nas obras.

Segundo ele, as obras reivindicam o lugar do negro na pintura baiana e das mãos afro-brasileiras que construíram esses tempos católicos e suas irmandades. "O dendê é essa força vital do trabalho, do tempero e da comida que, com essa cor, também representam essa ecologia de pertencimento", afirma ele.

A dimensão mais coletiva de seu corpo de trabalho, que se distancia daqueles blocos de resina estáticos com rapadura, vem justamente de sua relação com o terreiro e com o candomblé. "É como se a vida agora não precisasse desse bloqueio, da paralisia da memória. A vida se movimenta de uma forma plena no aqui e no agora", afirma o também professor universitário.

Existe também uma relação profunda com o trabalho do alemão Joseph Beuys, que elaborou a ideia de escultura social e também fez emergir de elementos como o feltro, mel e gordura animal um vocabulário próprio.

O candomblé ocupa um papel de destaque na última sala da mostra como "uma forma de se estabelecer com o mundo e com a natureza", afirma ele. Estão ali a grande instalação fotográfica "Borí", que representa cada um dos 12 orixás e seus alimentos correspondentes, representações de divindades do mar e instalação com vídeos de danças a partir dos elementos da natureza.

Uma parede toda também é dedicada a Omolu, divindade das doenças e da cura. "É como eu enfrento essas mazelas históricas e reivindico um processo de cura", comenta Ayrson Heráclito.

As coreografias a partir dos elementos da natureza que aparecem no candomblé, para o artista, o ensinaram a trabalhar esse universo religioso sem resvalar na etnografia, o que se tornou uma constante nas suas obras. "Temos que tomar um cuidado muito grande para não devassar os segredos", afirma ele. "Tudo aqui é uma ficção. Tudo aqui é literatura e narrativa afro-brasileira a fim de respeitar a espiritualidade, e não trazer para esse espaço algo que não é dele."​

Ayrson Heráclito: Yorùbáiano

  • Quando Abertura em 2 de abril, às 11h. Seg. a sáb.: 10h às 18h. Até 22 de agosto
  • Onde Pinacoteca Estação - largo General Osório, 66, Luz, São Paulo
  • Preço Gratuito
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