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'Escrevendo com Fogo', indicado ao Oscar, evoca Índia nua e crua

Documentário explora problemas sociais a partir do cotidiano de jornal criado por mulheres marginalizadas em 2002

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Escrevendo com Fogo

"Escrevendo com Fogo" é um filme com várias lições a tirar. O primeiro público interessado talvez seja o dos jornalistas, já que tudo gira em torno do Khabar Larahiya, jornal criado em 2002 por mulheres da casta dalit, dita a dos "intocáveis", pois impuros. Já se imagina a partir daí a dificuldade que enfrentam para fazer seu combativo jornal. A questão adicional é que ele é feito por mulheres.

Às dificuldades próprias ao jornalismo de investigação acrescenta-se o fato de ser feito por mulheres —o filme nos trará uma amostragem das barbaridades a que são submetidas— e o de as jornalistas serem pobres, marginalizadas e submetidas a toda espécie de humilhação. Apesar disso, trabalham como verdadeiras investigadoras em casos que vão de violência doméstica à denúncia de minas clandestinas operadas por mafiosos, passando por estupros de atrocidade inimaginável.

Cena do documentário indiano 'Escrevendo com Fogo', dirigido por Rintu Thomas e Sushmit Ghosh - Divulgação

Como elas conseguem isso? Não se trata de obter vazamento de informações que interessam a certas autoridades, nem de trabalhar em cumplicidade com policiais ou políticos. Elas fazem antes de tudo um questionamento corajoso de uma sociedade tradicional (o sistema de castas data do século 16, segundo o filme), hierarquizada e, claro, disfuncional.

A segunda lição que nos traz esse documentário indicado ao Oscar implica muito mais gente. Os brasileiros, por exemplo. Embora o sistema de castas não exista por aqui, nossa sociedade tem não poucas analogias com a indiana (ao menos tal como mostrada aqui). Começa pelos abismos sociais sem fim, passa pela violência contra as mulheres (que também atinge os homens dessa casta, é evidente, porém a que afeta as mulheres é ainda mais dilacerante), e chega até outra questão também muito próxima de nós, a influência dos religiosos na política _não esquecer que um partido religioso é o que atualmente controla a política indiana.

O documentário se detém não apenas nas denúncias, também aborda a formação das jornalistas. Começa pelos problemas que enfrentam em casa (maridos acham que mulheres têm de cuidar da casa e ponto); depois, a batalha das pioneiras para formar outras moças interessadas em trabalhar para o jornal, sendo que entre os dalit a educação não é frequente.

Apesar de todas as dificuldades que enfrentam, o documentário anuncia um crescimento exponencial número de acessos ao site do jornal (são 100 mil acessos, no princípio; passa de um milhão já para o final).

Tudo muito bonito, mas o ensinamento final vai para os documentaristas em geral. Primeiro, questões incômodas têm de ser respondidas. Não invalida o bravo trabalho das jornalistas saber quem financia seu veículo. Sendo os dalit gente despossuída, seria necessário deixar claro como ele se rentabiliza, quem o financia, se são contribuições voluntárias etc.

No mais, não existe problema em um documentário ser feito em moldes tradicionais, isto é, como algo que reporta de maneira objetiva fatos verdadeiros. No entanto, sabemos como a objetividade pode ser subjetiva. Certos fatos documentais nunca são mais do que supostamente verdadeiros. Assim, quando vemos as jornalistas fazendo denúncias de atrocidades aos policiais e cobrando deles uma atitude que não parecem dispostos a tomar, está claro que uma cena dessa natureza terá sido montada. Terá contado pelo menos com a anuência dos ditos policiais.

Nada impede, porém, que tais cenas sejam apenas representações. O espectador é convidado aqui a confiar na integridade dos documentaristas. Ou, para voltar à questão inicial: tornaria o filme bem mais jornalístico mostrar com clareza seu modo de produção: onde estão as câmeras, por que estão em tal lugar etc. Isso o tornaria mais verdadeiro também. Se confessasse claramente que tal ou tal cena foi encenada, ganharia em credibilidade: pode-se retratar fatos reais por meio da representação. Isso não afeta o documentário, apenas o torna mais digno de crédito, desde que o espectador seja devidamente informado.

Essas restrições não invalidam os problemas urgentes enunciados ao longo do filme. Elas são o que o tornam mais palatável, mais oscarizável. Ao mesmo tempo, o valor do trabalho documental de Rintu Thomas e Sushmit Gosh, realizadores do filme, se torna mais questionável, por mais simpáticos que possamos ser às ideias ali enunciadas.

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