Descrição de chapéu Entrevista da 2ª

Uso político do Museu do Ipiranga não vai pegar bem, diz vice-diretor da instituição

Amâncio Jorge de Oliveira diz que o Sete de Setembro, reabertura do museu, será 'celebração suprapartidária'

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São Paulo

O candidato nas eleições deste ano que usar a reinauguração do Museu do Ipiranga como vitrine eleitoral pode receber uma resposta negativa da sociedade, diz Amâncio Jorge de Oliveira, vice-diretor da instituição fundada em 1895.

Depois de uma ampla reforma, que vai dobrar a sua área, o museu paulistano tem previsão de reabertura em 7 de setembro deste ano, dia que marca o bicentenário da independência do país. Nesta ocasião, faltará menos de um mês para o primeiro turno das eleições.

Amâncio Jorge de Oliveira, vice-diretor do Museu do Ipiranga e professor titular da USP - Karime Xavier/Folhapress

As obras do museu avançam sob fogo político. O secretário da Cultura do governo Bolsonaro, Mario Frias, tem feito críticas ao governador de São Paulo, João Doria, por causa da reforma, custeada em grande parte, segundo Frias, pela administração federal. O governo estadual, por sua vez, acusa a gestão Bolsonaro de tentar se apropriar do projeto.

"Todo mundo sabe que o Museu do Ipiranga é um patrimônio cultural do país. Não vai pegar bem fazer uso político de maneira mesquinha, não vai colar", afirma Oliveira, sem falar em nomes. Ele faz o alerta, mas ressalta a importância do apoio que tem recebido dos três níveis de poder, federal, estadual e municipal. "Tudo o que a direção do museu pleiteou está sendo atendido."

Ao final, as obras custarão, segundo ele, R$ 211 milhões, cujas fontes são, sobretudo, patrocínios diretos e aportes por meio da lei Rouanet —"sem dinheiro privado não seria possível reformar e ampliar", diz. O museu está fechado desde 2013, mas a reforma só teve início efetivamente no final de 2019.

Caso raro de um negro na direção de um grande museu brasileiro, Oliveira afirma que a diversidade terá um papel central nessa nova fase da instituição.

Sua trajetória acadêmica é incomum. Ele se formou em medicina na Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, enveredou pelas ciências humanas a partir da pós-graduação e se especializou na área de relações internacionais dentro da ciência política. Professor titular do IRI, o Instituto de Relações Internacionais, da USP, Oliveira questiona a entidade. "A universidade precisa se perguntar o que está acontecendo. Por que existe uma boa representação de negros na base e na cúpula não?"

Folha - Como estão as obras de reforma e ampliação do museu?

Oliveira - Quando se fala em reforma, nós consideramos três frentes, a restauração do edifício-monumento, que é o prédio histórico; a ampliação, que é uma área completamente nova, à frente e abaixo do edifício-monumento; e o restauro do jardim francês. Estamos em estágio avançado em todas elas.

Estará mesmo pronto para o Sete de Setembro?

Sim. A museografia está sendo implementada, as coleções já começaram a ser preparadas para instalação. A última etapa é a inclusão dos equipamentos multimídia de apoio às exposições. O cronograma está em dia. É claro que pode haver algum ponto que exija complementos a partir de setembro, mas não são áreas sensíveis, vamos dizer assim.

O museu está fechado desde 2013. Há um público, em geral mais jovem, que vai visitar pela primeira vez. E outro que já esteve lá uma ou mais vezes. Pensando nesse segundo grupo, qual será a principal surpresa?

Essa combinação dos elementos históricos, mantidos na arquitetura do edifício-monumento, da modernização no interior do prédio histórico e da área nova será uma grata surpresa para o público que tem essa memória afetiva em relação ao museu. Haverá ainda um mirante que não existia antes.

O prédio novo, resultado da ampliação, terá uma ala administrativa e um setor educativo, entre outros departamentos, desafogando o edifício-monumento. Assim, serão, ao todo, 49 salas de exposição [antes eram 12]. Essa área nova terá um espaço de 800 metros quadrados para mostras temporárias.

Amâncio Jorge de Oliveira, um dos poucos homens negros que comandam instituições culturais importantes no Brasil, como o Museu do Ipiranga - Karime Xavier/Folhapress

O senhor não teme que o museu, a ser reinaugurado a menos de um mês do primeiro turno da eleição, seja usado como uma grande peça de marketing eleitoral?

Existe essa preocupação até porque os Sete de Setembro recentes têm sido muito politizados. Mas estamos fazendo uma comunicação e mesmo um trabalho político para que o museu seja um elemento de congregação.

Estamos falando de uma área que é da prefeitura, o jardim francês e o parque da Independência; de um museu que é da USP, logo do estado de São Paulo; e de um projeto de reforma que tem aporte da Lei Rouanet, ou seja, com participação do governo federal. O esforço de captação de recursos do governador foi muito importante, mas, ao mesmo tempo, as obras não seriam possíveis sem a Rouanet.

Temos recebido apoio de todas as esferas, tudo o que a direção do museu pleiteou está sendo atendido. E esperamos que continue assim até o dia 7 e depois, em que pesem essas disputas políticas. Não tem, portanto, como não ter os três níveis e mais a USP presentes nessa comemoração, será uma celebração suprapartidária.

Além disso, pode haver um efeito negativo para quem usar o museu politicamente. Todo mundo sabe que é um patrimônio cultural do país, não vai pegar bem fazer uso político de maneira mesquinha, não vai colar.

Já sabem como será a programação do Sete de Setembro?

Estamos planejando eventos artísticos e apresentações musicais no parque da Independência. Nossa maior preocupação é com o museu propriamente. Como está há tanto tempo fechado, muita gente vai querer visitar nesse dia. O museu estará aberto, mas não dá para antecipar como será, estamos estudando com cautela como receber o público de maneira segura no dia 7. E teremos muitas ações antes e depois dessa data.

Não dá para pensar o Brasil da independência, o Brasil do século 19, sem considerar o sistema escravocrata. O museu vai abordar isso?

É uma preocupação central nossa. Vivemos um momento de debates sobre decolonização, hegemonia, dominação. Qual a solução que o museu traz? Utilizar o acervo de maneira dinâmica, ou seja, apresentando um contexto histórico com a perspectiva de atores que surgem, em geral, de maneira subliminar. Haverá interlocução do público com as obras mediada por educadores, haverá oficinas, haverá muita interação.

Vamos mostrar o significado de uma obra na época em que foi concebida e o que ela significa hoje, considerando o papel do negro, do indígena.

As abordagens da independência ainda estão muito ligadas ao que aconteceu no Rio de Janeiro e em São Paulo, e nós sabemos que houve uma série de conflitos no Nordeste, no Norte, no Sul. O museu vai olhar para essas regiões?

Essa exposição "Memórias da Independência", com coordenação curatorial do professor Paulo Garcez, terá como alvo as perspectivas regionais sob a ótica das comemorações. Como os cem anos da independência, em 1922, foram celebrados em Salvador, no Recife, em Porto Alegre? Quais os significados e os símbolos dessas comemorações?

E não vamos só falar da independência, em 1822, mas também dos movimentos separatistas, que geraram muitas tensões naquele período. A Revolução Farroupilha e a Revolução Pernambucana são exemplos.

São raros os negros, sejam mulheres ou homens, à frente de grandes museus no Brasil. O senhor é um dos poucos no comando de uma instituição de projeção, com acervo relevante. Há alguma perspectiva de que a cúpula dos museus se torne mais diversa?

É um movimento ainda muito tímido no Brasil, que reflete uma estrutura piramidal que a gente encontra em todos os lugares. Nas universidades, existe uma base com representação mais expressiva de negros, que responde a esse movimento de inclusão; a camada intermediária da carreira tem muito menos; e praticamente não há negros na camada superior. É a mesma coisa nas corporações e no universo cultural.

O problema é que quem dá o tom continua sendo a elite tradicional. Nos Estados Unidos, curadores negros fazem alianças para defender lideranças em postos-chaves. Não basta ter a base, as decisões estratégicas estão na cúpula. Não adianta falar em política de inclusão sem ter diversidade entre aqueles que tomam as decisões.

O senhor tem uma trajetória bem-sucedida na USP. O que diria aos jovens negros que pretendem trilhar uma carreira em universidades de prestígio?

A primeira coisa a dizer, fruto da minha experiência de vida, é que não será fácil. Da minha entrada na universidade à ascensão a professor titular, o que mais ouvi foi "desista, não é para você, esse não é o seu lugar". Escutava isso em conversas com colegas e em outras ocasiões. "Por que prestar USP? Não é para você."

Há cotas também na pós-graduação, os jovens negros devem se valer delas para se tornar docentes. E devem se preparar porque não faltarão tentativas de os desmotivar.

É muito importante que existam lideranças negras para que o jovem possa se espelhar. Veja o nosso conselho universitário, na USP, qual é a diversidade? Até houve certo equilíbrio em gênero. E raça? A universidade precisa se perguntar o que está acontecendo. Por que existe uma boa representação de negros na base e na cúpula não? Há um problema que a universidade precisa enfrentar.

Passou por situações de racismo na sua carreira acadêmica?

Muitas, muitas. Eu morava numa casa de estudantes quando cursava medicina em Ribeirão Preto e num dia, ao acordar, vi uma pichação no muro em frente, com coisas horríveis. Tive colegas que desistiram da carreira porque sofriam pressões. Há coisas sobre as quais você se cala porque será chamado de radical e encrenqueiro se acionar a Justiça.

As manifestações mais atritadas aconteceram na graduação. Na docência, nunca houve uma situação aberta, mas você sente de modo subliminar de forma muito recorrente.

O que a pichação dizia?

Prefiro não falar, é desagradável.

O senhor afirmou que a universidade não enfrenta a falta de diversidade nas altas instâncias acadêmicas. Por que não?

A liderança, como não é diversa, não entende determinados segmentos. É o problema de desenhar políticas sem conversar com os atores que são objeto dessa política. Não funciona. Precisamos de mais professores em posições de direção para preparar essas novas políticas de diversidade.

Há ações pela diversidade no museu?

Essa é uma preocupação-chave na equipe curatorial e no setor educativo. Eles batalham por essa agenda nos conteúdos, nas contratações, na acessibilidade. Isso está presente no DNA do museu.

Raio-X Amâncio Jorge de Oliveira, 55

Nascido no Recife, ele se formou em medicina na Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. Em seguida, fez doutorado em ciência política na mesma universidade e obteve livre docência pelo Instituto de Relações Internacionais, o IRI, da USP. É vice-diretor do Museu do Ipiranga e professor titular do IRI

Alguns dos principais momentos da história do museu

  • Inaugurado em 7 de setembro de 1895
  • Foi integrado à Universidade de São Paulo em 1963
  • Em 1998, foi tombado pelo Iphan
  • O edifício foi fechado em agosto de 2013, visando à segurança dos visitantes e dos funcionários
  • Ainda em agosto de 2013, foram iniciados os trabalhos de proteção do acervo
  • Em novembro de 2016, começou o diagnóstico estrutural do edifício
  • Em 2017, foi realizado concurso para definir o projeto de restauro
  • Em novembro de 2019, começaram as obras da reforma
  • Neste momento, março de 2022, o museu finaliza as obras de restauro e ampliação e inicia a montagem das exposições; a reinauguração está prevista para 7 de setembro de 2022
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