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'Kapital!' leva grana palpável, dilema ético e piada política a tabuleiro

Adaptado ao Brasil atual, jogo tem único participante como representante da classe dominante e gera narrativas aleatórias

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Kapital: Quem Ganhará a Luta de Classes?

  • Preço R$ 280
  • Classificação 14 anos
  • Autor Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot
  • Editora Boitempo e Autonomia Literária
  • Tradução Gabriel Voliche

"Eu sou rica. Posso roubar?" Com essa singela dúvida de uma participante iniciou-se uma partida de "Kapital: Quem Ganhará a Luta de Classes?", jogo de tabuleiro que cria narrativas políticas aleatórias.

A jogadora que teve o dilema ético é a editora de livros Cecilia Arbolave, 36 anos, minha esposa. Ela obteve uma ascensão social meteórica graças ao rolar de dados.

Em "Kapital!", um único participante representa a classe dominante. O agraciado também cuida da banca de distribuição de recursos, daí a tentação de Cecilia em engordar a própria carteira.

O jogo tem quatro moedas, cada uma representando um tipo de capital: financeiro, social, cultural e simbólico. Chora Pierre Bourdieu, o capital é palpável e acumulável em notas no estilo "Banco Imobiliário" ou "Jogo da Vida".

A sociologia e a política estão plasmadas na estética. A caixa e as peças usam a paleta do realismo socialista, vermelho, preto e branco. As ilustrações no estilo linha clara poderiam fazer parte do Charlie Hebdo, semanário satírico francês.

 jogo de tabuleiro
Imagem do jogo de tabuleiro Kapital! - Divulgação

O manual de instruções incentiva que a escolha dos personagens se dê aleatoriamente. Assim, para Cecilia coube o carismático General Carvalho. Machista, ele perde capital simbólico sempre que termina a rodada ao lado de uma jogadora ou personagem mulher. Portanto, partidas disputadas apenas por homens dão vantagem competitiva a Carvalho. "Kapital!" perde a disputa, mas não perde a piada política.

Duas outras pessoas e eu compúnhamos a classe dominada. O quadrinista Marcos Batista, 38 anos, virou o violento Tonico Malvadeza, que porta um revólver na cintura.

 jogo de tabuleiro
Imagem do jogo de tabuleiro Kapital! - Divulgação

A estudante de economia e minha irmã, Natalia Varella, 18 anos, encarnou Emerson. Romântico, se não ficar junto de outro personagem, ele volta uma casa. Uma sucessão de resultados um e dois deixou Natalia empacada.

Eu virei o diplomático Caíque. De braços cruzados e descabelado, o egoísmo do personagem dificulta os efeitos da Greve Geral. Essa casa especial dá benefícios aos companheiros de plebe.

A cada rodada, os jogadores recebem um cartão com eventos que afetam a vida e o capital dos personagens.

Logo cedo, Caíque lançou um filme independente em um festival. Isso não trouxe dinheiro ao cineasta neófito, mas o encheu de capital cultural e simbólico –recursos não aceitos nos supermercados, no boleto da Enel ou para quitar o IPTU.

Depois, Caíque virou entregador de aplicativos e, contrariando seu presumido egoísmo, promoveu uma paralisação. Em outra rodada, perdeu sua bolsa de estudos.

As cartas não se resumem a narrar uma situação tragicômica com uma alteração na carteira do jogador. Também abordam um amplo leque de mazelas sociais presentes no debate público. "Kapital" nunca constrói a quarta parede, é diversão sem escapismo.

Um evento, por exemplo, só tem validade caso os efeitos da Covid-19 estejam vigentes. Uma chamada de realidade aos quatro amigos que vivenciavam os primeiros dias do fim da obrigatoriedade das máscaras em São Paulo. Quando vai expirar a validade desse cartão?

jogo de tabuleiro
Imagem do jogo de tabuleiro Kapital! - Divulgação

Alguns dos eventos trazem um parágrafo em letras vermelhas com referências reais sobre os assuntos abordados, sempre em tom crítico. "O Brasil tem passado por um projeto de sucateamento do investimento em ciência e tecnologia", diz um dos cards. Faíscas para conversas cordiais ou nem tanto.

Título francês lançado recentemente no Brasil pelas editoras Boitempo e Autonomia Literária, conhecidas pelo catálogo de livros ligados à esquerda, as informações de "Kapital!" estão adaptadas à realidade brasileira. A brevidade, fragmentação e abrangência dos assuntos lembra o ritmo do Twitter. Após abordar habitação, parte para economia compartilhada, educação, cultura ou qualquer outro fio desencapado da sociedade.

Até as 76 casas do tabuleiro têm uma razão de fundo. O número equivale aos anos da expectativa de vida dos brasileiros –para ser mais exato, 76,8 em 2020, segundo o levantamento mais recente do IBGE.

Nosso grupo embarcou no humor de "Kapital!". Uma das cartas instou Natalia a entoar um canto revolucionário. Ela prontamente declamou "New Rules" –hit sobre empoderamento feminino que catapultou a britânica Dua Lipa ao estrelato. Natalia embolsou 10 mil de capital cultural.

Aproveitamos as deixas da obra para fazermos nossos próprios gracejos, alguns deles irreproduzíveis. Gargalhadas sob a bênção da privacidade.

Até que Natalia, honrando o estigma da geração Z, passou a pular os textos. Batista também perdeu a paciência, começou a resumir as mensagens, "blá, blá, blá, passa a vez". A quase uma hora de duração da partida começava a pesar.

O General Carvalho de Cecilia foi o primeiro a chegar ao Paraíso Fiscal, casa final do tabuleiro. Em seu caminho foi a clubes elitistas, passou a difundir ideias liberais em um jornal e até enfrentou uma revolução que redistribuiu a renda entre os participantes.

Cecilia se manteve no topo da pirâmide social, foi a vencedora. Golpe de sorte ou um reforço para uma das teses de "Kapital!"? Ambas as alternativas.

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