Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Entenda como a Ucrânia fez da música um novo front da guerra contra a Rússia

Bandas como Kalush, favorita no Eurovision, resgatam sons ancestrais e negam 'língua do inimigo' para cantar em ucraniano

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São Paulo

Vestidos com roupas folclóricas, três mulheres e um homem encerram mais um show empunhando bandeiras da Ucrânia e cartazes que pedem o fim da guerra e a saída das tropas do presidente russo Vladimir Putin. Espalhados pelo país europeu, membros de uma outra banda, a mais conhecida na Ucrânia, se dividem entre a ajuda a conterrâneos em meio a bombardeios e ensaios para representar o país numa competição musical.

Quase uma década separa as duas cenas. Na primeira, a banda DakhaBrakha traduzia a revolta ucraniana no palco logo depois de a Rússia anexar a Crimeia, em 2014. A segunda reflete o ponto mais alto da tensão entre os países, agora em guerra, que além dos mortos e dos escombros também tem gerado transformações num dos pilares da construção da identidade ucraniana —a música.

A banda ucraniana DakhaBrakha
A banda ucraniana DakhaBrakha - Andriy Petryna/Divulgaçao

"O processo de repensar e reavaliar [a música da Ucrânia] começou em 2013 e 2014", diz o vocalista e multi-instrumentista Marko Halanevych, do DakhaBrakha, que atualiza sonoridades ancestrais da música ucraniana. "Naquela época, mais pessoas começaram a pensar sobre quem elas são, por que são e como melhorar. Esse retorno às raízes, uma autoimersão, deu muitas respostas a essas questões. Hoje, somos quem não fomos pelos últimos 300 anos."

Surgiu então uma onda de músicas cantadas na língua do país —antes preterida pela russa por artistas que queriam estourar num mercado financeiramente mais atrativo do lado de lá da fronteira. Agora, o russo virou a "língua do inimigo", como dizem, por email, os integrantes do grupo de hip-hop Kalush, um dos mais populares no país —e que vai representar a Ucrânia no Eurovision, que acontece ao longo desta semana.

"Claro, há mais música em ucraniano depois da guerra", afirmam. "Seria errado escrever música na língua inimiga. Nossa língua é nossa força motriz."

O próprio sucesso recente do grupo já é resultado desse aumento do interesse da população ucraniana pela música local. A banda se apresenta em duas encarnações —a usual, mais voltada ao rap, e a versão Orchestra, surgida no ano passado, que usa elementos tradicionais ucranianos. "Stefania", que será apresentada na competição, é um hip-hop eletrônico e contemporâneo, mas com cânticos que datam de centenas de anos atrás.

A faixa não tem relação com a guerra, mas, como quase tudo produzido na Ucrânia atualmente, acabou ganhando um novo significado. "Os campos florescem, mas ela está se tornando cinza", diz a letra sobre o envelhecimento de uma mulher, mas que também parece descrever um país em ruínas.

"Não há uma única palavra sobre a guerra nessa música e ela foi gravada antes de tudo começar, mas ‘Stefania’ teve seu sentido expandido para todas as mães que protegem seus filhos dos desastres da disputa. De uma canção sobre uma mãe, passou a ser uma canção sobre uma pátria", afirmam os integrantes da banda. "Historicamente, todos os eventos importantes para os ucranianos foram refletidos em poemas e canções. Nós costumamos dizer que a música é a alma do povo ucraniano."

Na busca por essa essência, os artistas que têm cantado a Ucrânia contemporânea e a guerra acabam buscando o que veio antes deles. É um resgate que não se reduz ao Kalush —Tymofiy Muzychu, integrante da banda, é versado na música folk e em instrumentos nativos, e atuou no campo de batalha—, mas respinga na música mainstream do país, de gente como Alina Pash, TNMK, Verka Serduchka e Jamala.

Talvez a melhor tradução desse movimento seja a estética musical criada pelo DakhaBrakha —a banda que pedia o fim da guerra antes mesmo de ela começar. Seu "ethno-caos", estilo que inventaram e batizaram, se associa à origem do mundo e a uma mistura caótica de instrumentos, influências e conhecimento.

"Muitas das músicas que usamos têm origem pré-cristã, em rituais que foram cultivados por nossos ancestrais e que foram parcialmente incorporados pela tradição ortodoxa", conta Halanevych. "Percebemos que algumas músicas atravessaram gerações por mil anos ou mais, e cá estamos nós, no século 21, repensando esses sons e dando nova vida a eles."

No que diz respeito ao que aconteceu de fevereiro para cá, a realidade dos músicos ucranianos parece ser um misto de bloqueio criativo, uma militância na web com hits irônicos e xingamentos a Putin e uma escolha consciente por trocar a caneta por armas —de forma literal ou por meio de trabalhos voluntários. É como se a música e tudo o que a rodeia se tornasse automaticamente um instrumento político.

"Muitos músicos ucranianos foram forçados a pegar em armas para defender seu país. É claro que uma experiência dessas mudará sua visão da arte e da música", diz o representante do DakhaBrakha. "Desde o começo da guerra nós não escrevemos músicas ou ensaiamos. Para nós não é um momento de criatividade."

Há séculos a produção cultural da Ucrânia é atravessada pelos atritos com o país vizinho, algo potencializado pelas línguas parecidas, as religiões em comum e os territórios adjacentes. E a música é um desses campos de disputa.

"Há uma similaridade da Ucrânia com o Brasil em relação à ideia de que os ucranianos são especialmente musicais, que a língua é melódica", diz Maria Sonevytsky, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, que há 20 anos pesquisa a música na Ucrânia pós-soviética.

Existe inclusive um estereótipo russo em relação ao jeito de cantar ucraniano. "Eles amam cantar e alguns dos chamados ‘grandes compositores russos’ buscaram inspiração na música rural e tradicional da Ucrânia —que, aliás, pode reivindicar para si a origem de alguns desses compositores."

Segundo Sonevytsky, a música ucraniana reflete uma história de luta contra o apagamento. Ela afirma que, no século 17, já havia canções que criticavam o imperialismo russo no território hoje conhecido como a Ucrânia. "São os ucranianos —ou pessoas que hoje seriam ucranianas— dizendo que não querem estar sob o Império Russo, ou criticando esse poder."

Depois, nos anos 1980, antes de a Ucrânia se separar da União Soviética, a produção musical do país também refletia um sentimento de independência. "As pessoas não queriam falar ucraniano porque tinham vergonha de que todo mundo pensasse que eles não eram educados. Em 1989, você tem o começo desses festivais de música dedicados à língua local. Toda a música era em ucraniano. É como dizer ‘nós existimos, temos uma língua, temos música, cultura, uma história’."

Essa exacerbação do nacionalismo pode descambar para o extremismo, acrescenta a professora, mas os movimentos "plurais e não nazistas de busca de uma identidade ucraniana têm crescido muito". Sonevytsky diz que quem começou essa revolução foi a rapper Alyona Alyona, agora em evidência também fora da Europa. Veterana da cena hip-hop da região de Kiev, ela despontou para o sucesso depois dos conflitos na Crimeia, cantando exclusivamente em ucraniano.

A rapper ucraniana Alyona Alyona
A rapper ucraniana Alyona Alyona - Dobrev Alexnadr/Divulgação

Alyona conta que a primeira grande onda de rap no país começou logo depois da independência, nos anos 1990. "Até 1995, era tudo em ucraniano, mas depois todos os artistas começaram a rimar em russo e fazer shows na Rússia para ter dinheiro. As pessoas na Ucrânia só ouviam rap em russo ou MCs americanos. O rap ucraniano passou a ser uma coisa underground."

Antes professora, a rapper viveu cerca de dez anos nessa cena independente até despontar para o mainstream há quatro anos, com um flow afiado e um estilo que une referências de Eminem ao canto lírico do folk ucraniano. Seu sucesso improvável abriu caminho para outros artistas. "Depois de mim, outros rappers começaram a ficar mais famosos unindo trap ou outros estilos de rap com música folk da Ucrânia."

Na guerra atual, Alyona Alyona, que faz parte do mesmo selo que o Kalush, passou 50 dias reunindo doações e fazendo trabalho voluntário na Ucrânia. Hoje, ela está na Polônia, e diz ter entendido que sua força é melhor empregada no que chama de "front musical" da guerra.

"Agora entendo que todas as pessoas podem ser voluntárias, mas nem todas podem pegar o microfone e ir à Europa fazer algo. Sou um soldado da música e passei a enxergar isso."

Para o vocalista do DakhaBrakha, que assim como Alyona Alyona e o Kalush, também está falando sobre a guerra em shows pela Europa, o legado do conflito pode incluir uma emancipação cultural do gigante vizinho. "Gêneros musicais vão desaparecer e cada vez menos músicos vão ter vergonha de cantar na nossa língua. Sim, somos um país pós-colonial, com todas as consequências e lesões que isso causou. Mas acreditamos que com o fim da guerra vamos nos livrar disso —finalmente."

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