Descrição de chapéu África

Vencedor do Pritzker, Francis Kéré conta como Niemeyer inspira sua arquitetura única

Primeiro negro laureado com o Nobel da área reúne aspectos do conhecimento popular de seu país, Burkina Faso

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Obra do arquiteto Francis Kéré, vencedor do Pritzker

Obra do arquiteto Francis Kéré, vencedor do Pritzker Divulgação

Rio de Janeiro

O verbo mais conjugado foi inspirar. Durante uma hora de entrevista, Diébédo Francis Kéré usou várias vezes os termos "meu povo" e "minha comunidade". Fazia menção ao vilarejo de Gando, onde nasceu em Burkina Faso, na África.

Sobre sua origem, de início, o vencedor do prêmio Pritzker deste ano lembrou sua espécie de identidade dupla . "Eu tenho passaporte alemão. É uma boa conexão entre um mundo de tecnologia e um mundo da tradição, que é o meu país."

O arquiteto Diébédo Francis Kéré, vencedor do prêmio Pritzker deste ano - Lars Borges/Pritzker Architecture Prize/AFP

Kéré é o primeiro homem negro a ser laureado com o Nobel da arquitetura, premiação anual de quatro décadas de existência. Quando perguntado sobre a quebra dessa barreira histórica, ele responde que é um homem de um lugar onde não havia acesso à profissão da arquitetura.

Isso não é uma particularidade, segundo ele, mas algo recorrente no continente africano. Para a imensa maioria da população, entrar numa escola de arquitetura parece uma ideia de outro planeta. É uma universidade muito cara, disse enfaticamente o germano-burquinense. E complementou que poder estudar arquitetura é um privilégio.

Tal privilégio chegou para ele numa idade mais avançada que o habitual. Primogênito do chefe da vila, Kéré saiu do lugar onde nasceu aos sete anos para poder ir à escola. Em 1985, o deslocamento foi continental –ganhou uma bolsa de estudos para aprender carpintaria. Só aos 30 anos de idade entrou no curso de arquitetura da Universidade Técnica de Berlim.

"Comecei a construir ainda quando estudante", ressaltou. A cronologia de sua vida profissional confirma. Francis Kéré se formou em 2004, mas a Escola Primária de Gando, sua primeira obra, é de 2001.

Esse edifício será um dos seus cinco projetos expostos no Sesc Avenida Paulista, durante a 13ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, que começa no fim do mês. Nessa mostra será ressaltada a participação das mulheres nos mutirões de construção.

O arquiteto destacou a capacidade das mulheres de seu vilarejo para analisar e selecionar a melhor argila da região para fazer tijolos. É a matéria-prima usada nas obras de casas da vila desde tempos imemoriais. Ele identificou ali um saber não documentado, mas transmitido de boca em boca pelas gerações. "Quando eu uso argila, eu estou me beneficiando do conhecimento popular", diz o arquiteto.

Vista da escola Aldeia-Ópera, planejada pelo arquiteto Diébédo Francis Kéré, vencedor do prêmio Pritzker, em Burkina Faso - Olympia de Maismont/AFP

Kéré desmistifica esse modo de trabalho coletivo. "Construir com a comunidade é algo inerente à tradição em Burkina Faso. Na minha vila, ninguém constrói uma casa sozinho." Ele continua explicando que essa atividade é exclusiva aos períodos secos do ano, enquanto as estações chuvosas são dedicadas à colheita. Questionado se havia algo de ritualístico nessa reunião para edificar, ele diz que sim, mas corrige a terminologia –o mais apropriado seria "evento comunal".

Sobre o retorno à sua comunidade para projetar escolas, contou que, quando estudou na Alemanha, seu desejo "era aprender a fazer ferramentas com as quais poderia retornar a Burkina Faso". "Era traduzir de um modo simples com o qual a minha gente poderia entender." Sabendo da oportunidade rara que teve, a construção comunitária é descrita como uma via de mão dupla –"aos que participam das obras eu quero transferir conhecimento".

Tal aspecto fica mais evidente nos singulares telhados. Nos projetos em seu país, no Mali e em Moçambique para edifícios educacionais, residenciais, institucionais ou de saúde, Kéré concebeu coberturas duplas, com um teto rente aos interiores e outro plano acima mais leve —a distância entre essas duas superfícies faz com que o calor dos raios solares seja dissipado pelo vento antes de entrar dentro da construção.

Vista do restaurante Balasoko, projetado pelo arquiteto Diébédo Francis Kéré, no Parque Nacional do Mali - Florent Vergnes/AFP

O arquiteto quis explicar de modo mais didático fazendo uma metáfora com chapéus de agricultores de campos de arroz na Ásia, de caubóis americanos ou sombreiros mexicanos, que têm abas grandes para proteger de um sol agressivo e de chuvas torrenciais. É uma necessidade válida tanto para pessoas em diferentes continentes quanto para seus edifícios de engenhosas coberturas em Burkina Faso.

Há, porém, um outro raciocínio –embora essa mesma estratégia funcione em muitos lugares, seu desenho arquitetônico não é genérico. "Eu odiava ver edificações iguais sendo replicadas por todo o meu país. A razão da arquitetura sofrer em Burkina Faso é que lá se faz uma pura cópia dos parâmetros do Ocidente sem nenhuma reflexão a respeito do clima, da cultura local e da economia local. Não havia arquitetura naquilo."

Seu contraponto está exatamente nas formas variadas dos telhados —curvos, inclinados, planos ou em arco. Tal inventividade, em alguma medida, foi aprendida com um brasileiro lembrado, por mais de uma vez, por Kéré como sua inspiração –Oscar Niemeyer.

O argumento do arquiteto se conclui com uma frase que certamente agradaria a seu ídolo carioca. "Eu queria fazer uma escola que não parecesse com qualquer outra escola em Burkina Faso."

Solícito durante a entrevista, não demonstrou qualquer traço de estrelismo tão comum —quase um estereótipo— em arquitetos laureados, ainda mais quando recebem o principal prêmio da profissão.

Vista do Parque Nacional do Mali, com projeto do arquiteto Diébédo Francis Kéré - Florent Vergnes - 15.mar.22/AFP

Na ata do júri do Pritzker, uma frase chama a atenção. Kéré "sabe que arquitetura não é sobre objeto, mas sobre objetivo; não é sobre produto, mas sobre processo". Por mais acertadas que sejam tais palavras, é preciso reconhecer que arquitetura também diz respeito à forma.

É exatamente em Burkina Faso que se encontra um conjunto de edificações que põe as formas e os princípios da arquitetura ocidental na berlinda. A vila de Tiébélé é composta por casas de barro, assumidamente volúveis e anualmente refeitas, com paredes nada geométricas que ostentam belíssimas padronagens coloridas. Comparados à absolutamente informe arquitetura de Tiébélé, seriam os projetos de Kéré quase bauhasianos?

O arquiteto Diébédo Francis Kéré, premiado com o Pritzker de 2022, no seu escritório em Berlim - Odd Andersen - 15.mar.22/AFP

A pergunta provocativa gerou o momento de maior entusiasmo do arquiteto. Falou sobre a viagem que fez a Tiébélé com o fotografo Iwan Baan em 2020, que deu origem ao recém-lançado fotolivro "Momentum of Light" e a um documentário.

Revelou que está em contato com técnicos da Unesco para a preservação da cidade, em suas palavras, "um tesouro, um patrimônio comunitário, uma fonte de inspiração" para pensar soluções arquitetônicas novas. "Tiébele é muito complexo, o que eu faço é banal comparado àquilo", afirmou. "Eu admiro a vila, mas não a replico."

Para se diferenciar, Kéré listou com precisão as características centrais de sua filosofia arquitetônica, dizendo ser racional, visando edifícios confortáveis e duráveis por meio de um modelo de produção artesanal capaz de ser reproduzido em diferentes lugares. Quando Kéré fala sobre a reprodutibilidade dos modos de fazer, ele volta a usar o verbo inspirar.

"Eu sinto que várias meninas e meninos africanos se motivaram para serem arquitetos", ele diz, refletindo sobre as consequências do seu prêmio. "Tenho certeza que o número de inscritos em faculdades de arquitetura na África vai duplicar ou triplicar."

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