Descrição de chapéu

Lina Bo Bardi, morta há 30 anos, ainda tem seu impacto no Brasil de hoje

'Lina: Uma Biografia' nos oferece as ideias da arquiteta alvo de preconceito que uma parte do país tem do próprio país

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Nos 30 anos de sua morte, completados neste 20 de março, a arquiteta Lina Bo Bardi atinge uma dimensão mítica jamais alcançada em vida. Mais conhecida pelos projetos do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, e do Sesc Pompeia, em São Paulo, ela mantém na raiz de seu mito um pensamento sobre a cultura brasileira florescido nos anos 1950 e 1960 e despedaçado nas duas décadas da ditadura militar. Sua influência crescente ainda convive com os impasses de seus triunfos e fracassos.

Na extensa bibliografia sobre a arquiteta italiana, "Lina: Uma Biografia", da editora Todavia, de Francesco Perrotta-Bosch, se distingue por apresentar a construção de seu olhar estrangeiro e descolonizado de uma maneira que nos faz pensar em novas consequências culturais de seu projeto para o Brasil.

Arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi
A arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi - Bob Wolfenson

A estrutura do livro absorve a ideia de um tempo não linear, tal como Bo Bardi expressou no ordenamento dos cavaletes de vidro do Masp – flutuantes e sem hierarquias na travessia de ciclos e escolas artísticas. Desobediente à ordem cronológica, o biógrafo assume o risco de subordinar os capítulos a instantes decisivos da trajetória da arquiteta. Entramos no labirinto Lina.

Ressaltemos ainda o dom de narrador do biógrafo e o apuro estilístico de que dava mostras em seu ensaísmo de ponta sobre arquitetura, que nos ajuda a pensar os desafios urbanos com rigor e independência.

Nas curadorias de arte popular em Salvador e São Paulo, da década de 1960 à de 1980, Bo Bardi se revelou uma pensadora original do Brasil, sem depender de um ordenamento textual de suas ideias. Na narrativa de Perrotta-Bosch, acompanhamos a formação de seu pensamento crítico, até aqui mornamente iluminado por exposições cristalizadoras.

No Masp, houve o remake "A Mão do Povo Brasileiro 1969/2016". Em Salvador, no ano passado, a mostra de título devocional "O Museu de Dona Lina" foi aberta no Museu de Arte Moderna da Bahia, o MAM-BA, que maculou o projeto arquitetônico de sua ex-diretora ao construir um agigantado píer para navegantes deslumbrados.

As exposições reverenciais não alcançam a atualidade das proposições curatoriais de Bo Bardi e seu diálogo com o Brasil contemporâneo. Perrotta-Bosch cumpre esse desígnio e complementa o bom efeito da coletânea "Lina por Escrito", da Cosac Naify, organizada por Silvana Rubino e Marina Grinover, essencial para a compreensão da arquiteta segundo as suas próprias palavras.

O desejo de uma nova civilização não deve ser menosprezado em sua abertura mental para o Brasil. Em Milão, Bo Bardi vivenciou a grande regressão humanitária da Segunda Guerra e atravessou os anos porcos da República de Salò, a humilhante ocupação nazista da Itália.

"Aqueles que deveriam ter sido anos de sol, de azul e alegria, eu passei debaixo da terra correndo e descendo sob bombas e metralhas", ela declarou. Em 1946, o Vesúvio foi sua última visão da Europa. Pouco antes de aportar no Rio de Janeiro, Bo Bardi avistou o prédio do Ministério da Educação e Saúde, marco da arquitetura moderna brasileira. Ela o compararia a um "grande navio branco e azul contra o céu".

A um oceano de distância das ruínas da guerra, ela não investiu numa leitura totalizante do Brasil, nem se arriscou a definir uma identidade nacional ou traduzir uma diversidade geográfica, no que se distanciava dos modernistas. Havia nela o fascínio de reconhecer elementos civilizacionais em regiões vistas como atrasadas e rudimentares.

Não à toa, ela chamaria de "Civilização do Nordeste" sua memorável exposição no Solar do Unhão, na Bahia. Como afirma Perrotta-Bosch, "não assumiu o papel de importadora de know-how por sua formação europeia". "Não tinha nenhum traço de índole civilizatória. Lina teve verdadeira curiosidade pelo que aqui existia."

A biografia traz um momento definidor de sua concepção da arte e da sociedade. Numa viagem ao sertão da Bahia, ao lado do escultor Mário Cravo Júnior, Bo Bardi se impressionou "com itens que saciam hábitos cotidianos para a sobrevivência humana, como um conjunto de canecas". "Entretanto, as canecas que lhe interessavam eram feitas de latinhas de lubrificantes Esso, Hypoide, Shell, Texaco e Mobiloil. Em Feira de Santana, ela encontrou dois bules: um deles utilizara a embalagem de Toddy; o outro, uma lata de manteiga salgada."

Era uma espécie de antropofagia popular de objetos de consumo. Nas palavras da arquiteta, "cada objeto risca o limite do ‘nada’, da miséria". "Esse limite e a contínua e martelada presença do ‘útil’ e ‘necessário’ é que constituem o valor desta produção, sua poética das coisas humanas não gratuitas, não criadas pela mera fantasia."

No contato com o Nordeste, constata o biógrafo, a arquiteta reconheceu um caminho de abordagem da cultura brasileira. "Essas coisas eram mais do que objetos interessantes para serem selecionados por uma curadora sagaz, a qual os exporia num museu e disseminaria em páginas de revistas e livros. Essas coisas foram o ponto de partida de Lina Bo Bardi para um projeto de Brasil. Não era um projeto arquitetônico, mas um projeto de produção nacional autêntica, ‘de cultura autônoma, construída sobre raízes próprias’. O nome cunhado por Lina para tais coisas é a palavra-chave: pré-artesanato", observa Perrotta-Bosch.

O pré-artesanato, elaborado de forma rudimentar por famílias de pequenas comunidades nordestinas, não exigia o nível de organização social do artesanato. "Não há teoria aqui: o pré-artesanato é fruto da experiência real da pobreza", definiu Bo Bardi, convicta dos impactos brutais da industrialização tardia e abrupta do país. O capital fortalecia a mentalidade importadora. E as disparidades sociais do Brasil, mais tarde enfrentadas pelo cinema novo e tropicalismo, a afetavam e exigiam uma revisão histórica pelo viés da arte.

Essa percepção se esboçara no início dos anos 1950. "A história das artes no Brasil continua ainda em grande parte inédita", disse a nota editorial do primeiro número da "Habitat", de outubro a dezembro de 1950, então dirigida por Bo Bardi. No sumário, como sublinha Perrotta-Bosch, havia o anúncio de "matérias sobre cadeiras, vasos de barro, tecidos, sisal, questões indígenas, ex-votos do Nordeste e fotografias de Geraldo de Barros".

A idealização da elite brasileira, apresentada como europeizante e hostil à sua identificação com os estratos populares, impulsionava o espírito de Bo Bardi na atribuição de papéis de inimigos estratégicos para melhor pensar os conflitos culturais. Ela se iluminava no contraste. Mesmo que ela tenha se definido uma "antifeminista", é certo que sua personalidade imponente enfrentou o machismo e a desconfiança dos homens de engenho e arte.

Sua saída abrupta da Bahia se deveu mais à virada do golpe militar de 1964 do que a uma oposição sistemática ao seu trabalho, como ela enganosamente faz crer no artigo "Cinco Anos Entre os Brancos", na revista Mirante das Artes, em 1967. Seja como for, o olhar curatorial de Bo Bardi dava protagonismo à mentalidade pré-moderna no momento de afirmação do modernismo. Havia um inegável ultraje em sua ênfase.

De todos os nomes de ex-colaboradores omitidos nesse artigo de acerto de contas, Mário Cravo Júnior era, sem dúvida, a sua maior decepção. Cravo Júnior não escondia de amigos seu envolvimento amoroso, além de profissional, com a então diretora do MAM. Nenhum desses elos o impediu de cometer uma deslealdade.

Em agosto de 1964, passado o terror inicial do golpe, ele aceitou suceder a arquiteta na instituição, mesmo sabendo do desmonte de seu projeto com a exposição de materiais subversivos, imposta ao museu pelo Exército. Perrotta-Bosch lembra que o artigo foi escrito "após pipocarem matérias sobre o Mamb [antiga sigla do MAM-BA] e o Map [Museu de Arte Popular] em 1967, nas quais iniciativas pensadas por Lina eram creditadas ao então diretor Mário Cravo Júnior".

Outro episódio confirma que a ditadura militar abortou seu projeto generoso de país. A mostra "Nordeste do Brasil", prevista para a Galleria d’Arte Moderna, em Roma, em março de 1965, foi cancelada pela embaixada brasileira às vésperas da inauguração. "As carrancas, o pré-artesanato, os pilões, as imagens de santos, os ex-votos atravessaram o Atlântico no começo de 1965. Não somente chegaram à Itália, como foram instalados no salão de exibições", conta Perrotta-Bosch.

"Trata-se, entretanto, justamente do oposto da pop art: não são gestos de integração, mais ou menos passiva, de uma cultura economicamente avançada, mas esforços desesperados de uma sociedade condenada à morte e que denuncia a sua existência intolerável", opinou o crítico Bruno Zevi, no artigo "A Arte dos Pobres Assusta os Generais", no semanal romano L’Espresso.

Dali a três meses, em Gênova, na mesma Itália, Glauber Rocha apresentaria o mais célebre manifesto do cinema brasileiro, "Uma Estética da Fome", no qual afirma que "somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência". Sua visão do país e do universo das artes se irmanava à atitude radical de Lina Bo Bardi nas exposições do MAM, acompanhadas de perto pelo jovem cineasta, que se reconhecia ainda na hostilidade ao establishment.

"O mundo oficial encarregado das artes gerou exposições carnavalescas em vários festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, vários coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de letras e artes, júris de pintura e marchas culturais pelo país afora", atacou Glauber.

A convivência das elites econômicas com a criação artística contestadora de seus privilégios era um dos traços das alianças políticas de Bo Bardi, em São Paulo ou na Bahia. De todo modo, essa é uma velha e não superada contradição do meio artístico. Como ilustração, a passividade dos artistas com o presidente da Bienal de São Paulo, o banqueiro José Olympio da Veiga Pereira, que não teve pejo de confessar seu voto no candidato de extrema direita Jair Bolsonaro. "Naquele momento, ele representou uma esperança", disse o banqueiro a este jornal.

O presidente do grande mostruário da sensibilidade e do imaginário cultural brasileiro enxergou "esperança" num candidato de ideias fascistas e inimigo das artes e dos artistas indígenas celebrados na Bienal "Faz Escuro Mas Eu Canto". Na vizinhança do pavilhão da Bienal, outro país. O Museu Afro Brasil, criado e dirigido por Emanoel Araujo, tem sido o único herdeiro visível das curadorias das margens de Lina Bo Bardi, assumindo o caminho das heranças luso-afro-brasileiras.

O legado de Bo Bardi talvez seja melhor observado se nos voltarmos para o estágio atual da civilização que ela encontrou, discutiu e expôs. Nos anos 1950, a arquiteta percebeu as mudanças socioculturais do Nordeste e se aproximou dessa fissura com um sentido de urgência, articulando economia, arquitetura e design.

Identificar os resultados dessa crise na arte popular dos dias correntes, sem perder de vista a intervenção histórica de Lina Bo Bardi, seria um exercício fiel ao seu espírito. Com seu livro, Perrotta-Bosch nos oferece um roteiro de ideias insubmissas daquela que enfrentou o horror e o constrangimento que uma parte do Brasil tem do Brasil.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.