Africanos não foram só vítimas da colonização, afirma escritor Mia Couto

Moçambicano abre Feira do Livro e defende a complexidade das relações humanas ao lembrar história de genocídio

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São Paulo

É preciso olhar para a África com sua complexidade, inclusive na margem de culpa que pessoas daquele continente tiveram na história da própria colonização. Quem diz isso é o moçambicano Mia Couto, escritor premiado com o Camões e convidado de abertura da nova Feira do Livro, que acontece no Pacaembu, em São Paulo.

retrato de homem branco de óculos e barbas e cabelos grisalhos
O escritor e biólogo moçambicano Mia Couto, autor de 'Terra Sonâmbula' e 'Mulheres de Cinzas' - Renato Parada/Divulgação

O autor fez uma defesa do olhar mais sofisticado para as relações humanas após ser perguntado sobre as razões de falar das agruras de um colonizador português no seu próximo romance, ainda em produção —algo similar ao que o tanzaniano Abdulrazak Gurnah, vencedor do Nobel, fez em "Sobrevidas".

"Como todos os continentes, África teve seus conflitos internos, por exemplo na cumplicidade das elites africanas com o comércio de escravos e a operação colonial", diz. "Os africanos não foram sempre só vítimas, e a aceitação dessa margem de culpa nos dignifica. Porque não nos reduz a objetos na ação de outros. Foi uma história de dominação e genocídio, sim, mas os africanos não foram sempre objetos passivos."

Simplificações sempre produzem mentiras, segundo o escritor, mas em determinados momentos históricos foi preciso lançar mão delas em nome da autoafirmação —vale lembrar que Couto teve uma participação ativa na luta pela independência de seu país da colonização portuguesa, alcançada em 1975.

"A simplificação do continente pode ter ajudado quando era preciso afirmar que África tinha cultura e história —nós próprios africanos falávamos de uma África. Mas depois construímos identidades e vozes diferenciadas, somos plurais desde sempre."

Há diferenças enormes, aliás, entre Couto e Paulina Chiziane, a mais recente vencedora do Camões e igualmente moçambicana, mas diferente em cor. A autora de "Niketche" foi a primeira mulher da África a vencer o prêmio, e a primeira negra a publicar um romance no seu país.

O repórter pergunta se Couto avalia que ser um homem branco o ajudou a se tornar um dos autores mais prestigiados da língua portuguesa. Ele responde sorrindo que "gostaria de imaginar que não", mas afirma ser fruto de uma "cota invisível pela sua condição racial".

São poucos milhares de brancos em Moçambique, diz ele, contra dezenas de milhões de negros. Mas esse privilégio está se dissolvendo, e hoje o reconhecimento aos escritores negros é muito maior, o que se espelha na figura de Chiziane.

"Ela não ganha prêmios porque ela é mulher nem porque é preta, mas por sua obra", complementa ele, acrescentando que de quebra ela tem o mérito do pioneirismo.

Em Moçambique, houve ao longo da história "um clima que impedia que mulheres fossem lidas como sujeitos de sua própria história", ainda mais ao falar sobre sua sexualidade como faz Chiziane. "Além de um exemplo como escritora, ela é um exemplo de heroísmo."

Couto conhece seu país como poucos, e seu último livro, "O Mapeador de Ausências", é um reflexo do quão profunda é essa relação. Ele já estava na metade de um romance de tons autobiográficos sobre um escritor famoso que volta para sua terra natal quando um ciclone levou destruição e morte a Moçambique.

A catástrofe na Beira, onde Couto cresceu, foi devastadora. Estimam que 90% da cidade ficou embaixo da água, e a tragédia acabou incorporada à trama. O que era uma história sobre "perder o chão da infância" ganhou um peso literal. "Pudemos sentir como o chão é mais frágil do que pensamos".

"O Mapeador de Ausências" era um esforço de ajudar a cidade de suas lembranças a renascer —e acabou se transformando num exercício de reconstrução de uma cidade devastada, o que ele diz ter feito com todo o cuidado para evitar a sensação de que estava se aproveitando de uma tragédia.

É também em tom de fatalidade que ele fala do governo Bolsonaro. Há três anos, o escritor deu uma entrevista a este jornal ao lado do angolano José Eduardo Agualusa em que ambos afirmaram sentir no Brasil um clima similar ao que prenunciou a guerra civil que culminou na emancipação de seus países.

"As guerras começam pela fabricação do outro como alguém culpado, desumanizado, e isso se acumula no Brasil", diz ele. "Há conflitos que sempre existiram, a guerra contra os povos indígenas dura séculos, e ganha outra dimensão neste governo. O reconhecimento da dignidade dos negros é outra guerra nunca resolvida. Bolsonaro potencializa esses conflitos e traz outros, contra a democracia e as instituições."

"São guerras em estado embrionário, não conflitos abertos", diz. "Mas, se estivermos do lado mais fraco, vamos sentir isso com maior drama."

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