Antónia Brage soube pelos vizinhos, no fim da tarde do dia 14 de março de 2019, que um ciclone atingiria a costa da cidade de Beira, onde vivia. Como o canal de Moçambique costuma receber esses fenômenos climáticos, a doméstica de 56 anos não se preocupou.
Às 22h, porém, o vidro da janela da sala arrebentou. Ventos de 220 km/h invadiram a casa e destruíram todas as outras janelas. A chuva torrencial inundou tudo, misturando cacos de vidro e a areia que vinha da rua. Sem eletricidade, Antónia chorava. “Eu perguntava ‘Deus, você não está a ver isso?’”
O terror durou até às 6h. Quando o sol saiu, e a água começou a escoar, Antónia viu que a comida se perdera. Sua cama, também. O neto mais novo estava com fome, mas ela não podia comprar comida, porque a maioria das ruas estava interditada por árvores.
Em dezembro do ano passado, Antónia conseguiu comprar uma cama nova. Mas ainda precisa cobrir as janelas com cortinas de papelão. É assim, a passos lentos, que se recuperam os moçambicanos atingidos pelo Idai, ciclone que há um ano atingiu a região centro-oeste do país.
De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), a combinação de ciclone, enchentes e deslizamentos de terra matou mais de 700 pessoas e deslocou 150 mil em Moçambique, no Zimbábue e no Maláui.
Também varreu 715 mil hectares de áreas cultivadas, pouco antes da época de colheita, afetando, direta e indiretamente, mais de 3 milhões de pessoas nos três países africanos.
Beira abriga o maior porto do centro de Moçambique e escoa a produção que vem das linhas ferroviárias que chegam do Zimbábue e do Maláui.
Nos dias seguintes à passagem do Idai, a cidade perdeu contato com o resto do país e registrou surtos de cólera e de malária.
“O que se via aqui depois do Idai era uma cidade tomada pelas árvores derrubadas, a maioria das coberturas havia sido arrancada, e não havia eletricidade. Praticamente uma cidade fantasma”, diz Daviz Simango, prefeito de Beira.
Desde então, o canal de abastecimento de água foi recuperado, assim como a estrada de acesso à cidade, mas os reflexos do ciclone ainda estão presentes.
As “txopelas”, como os moçambicanos chamam os tuk-tuks usados para transporte, têm dificuldade para desviar dos buracos nas ruas, e troncos de árvores sem galhos marcam a paisagem da avenida Sansão Muthemba, onde jovens moçambicanos se encontram para ver o pôr do sol.
Situação especialmente crítica é a da Casa de Cultura, centro que oferece atividades artísticas e se dedica à preservação das danças típicas moçambicanas.
No ano passado, o Idai arrancou o telhado que cobria o teatro. Com as chuvas que caíram por uma semana sem parar depois do ciclone, os camarins e o estúdio de gravação mofaram.
As poltronas do teatro estão hoje na sala de balé, sobre um assoalho destruído. No cômodo ao lado, o que era para ser um ateliê abriga também aulas de música e dança.
“Qualquer ventania hoje nos lembra o Idai”, diz Jacinto Alferes Jaime, dançarino que chegou à instituição em 1990, aos cinco anos. “Só pelo fato de subir naquele palco, vinham ideias novas, inspiração. Não temos o mesmo sentimento dançando noutros sítios.”
Com as chuvas intensas trazidas pelo Idai e o ciclone impedindo o escoamento normal das águas, os rios Pungoé e Buzi inundaram, alcançando regiões que nunca haviam sofrido com cheias.
Em províncias vizinhas à Sofala, onde fica Beira, como Manica, Tete e Inhambane, a água passou em alta velocidade por vilas e cidades.
O prefeito de Beira diz que, no entanto, o sistema de drenagem, ampliado em 2018, conseguiu dar conta do escoamento das águas, “evitando uma tragédia pior”.
Em Dombe, por exemplo, que fica a 280 km dali, o casal Antonion e Arminah Mongwani perdeu os filhos Sarah, 9, Ecita, 5, e Fernando, 3, para a força das águas.
Três dias depois que o ciclone passou, Antonion encontrou o corpo de Fernando. Como havia perdido tudo, contou ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha que enterrou o filho enrolado na camiseta que vestia —a única que ainda tinha.
“Nas províncias, já conseguimos restabelecer as redes elétricas, as estradas e reabilitamos 67 escolas”, diz Francisco Pereira, diretor do Gabinete de Reconstrução Pós-Ciclone do governo moçambicano.
Pereira afirma que os grandes projetos, financiados pelo Banco Mundial, pelo Banco Africano de Desenvolvimento, a Comissão Europeia e o Banco Europeu de Investimentos, começarão neste ano.
Um deles, em parceria com a ONU Habitat, pretende reconstruir as casas destruídas com coberturas e paredes mais resistentes a ventos de ciclone. “Entretanto, dos US$ 3 milhões [R$ 14,58 milhões] do orçamento inicial, só conseguimos arrecadar US$ 1,8 milhão [R$ 8,75 milhões]”, explica Pereira.
Esse orçamento não é destinado somente à reconstrução da zona central de Moçambique, mas também a projetos na província de Cabo Delgado, na zona norte do país.
Lá, outro ciclone, batizado Kenneth, devastou a região seis semanas depois da passagem do Idai, matando 45 pessoas e destruindo 55 mil hectares de terras cultivadas.
A recuperação de Cabo Delgado é dificultada por uma situação de violência armada. Desde outubro de 2017, a região vive uma série de ataques terroristas, orquestrados por membros do movimento islamista Ansar al Sunnah.
Pilhagens, sequestros, execuções e decapitações já somavam 250 mortos e milhares de deslocados em maio do ano passado.
“A maioria das casas na região era feita de pau a pique e já foi reerguida”, explica Francisco Pereira. “Mas o gabinete vai iniciar neste ano um projeto para fortalecimento das casas nas ilhas de Ibo e Macomia, que foram fortemente atingidas.”
A volta aos campos agrícolas, entretanto, ainda é dificultada pelo medo que os habitantes têm dos ataques, de acordo com o Comitê da Cruz Vermelha.
Nos últimos anos, Moçambique tem vivido mudanças nos seus padrões climáticos. De acordo com um perfil feito pela Comissão Holandesa de Avaliação Ambiental, a temperatura média anual moçambicana aumentou 0,6ºC entre 1960 e 2006.
Com isso, aponta o relatório, a frequência de chuvas diminuiu, mas o volume de precipitação aumentou. Consequentemente, secas e inundações têm se tornado mais severas.
Em relação a ciclones, a tendência é parecida. “No oceano Índico, que banha Moçambique, temos visto que os ciclones têm se tornado mais frequentes e mais ferozes. Em termos de magnitude, severidade, força do vento”, afirma António Queface, meteorologista e professor da Universidade Eduardo Mondlane, na capital Maputo.
Em Dombe, Antonion Mongwani precisa cuidar dos filhos Gergerto, 16, Graça, 13, e Maculado, de nove meses.
Mas ainda procura, sozinho, pelos corpos dos que morreram com o Idai. “Faz um ano e ainda dói, mas espero que lentamente a dor desapareça”, diz ele.
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