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Filme 'Espero que Esta te Encontre' pensa o amor com nostalgia idealizada

Documentário que segue rastro de cartas com pesquisa interessante se perde com ponto de vista romântico

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Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem

"Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem" se faz em dois movimentos. Um deles diz respeito à memória: o encontro de cartas achadas em uma feira de antiguidades, o fascínio por algumas delas e a busca do sentido do que ali está escrito.

Desse primeiro encontro derivam viagens que remetem ao passado: como era Campo Grande, por exemplo, há 50 ou 60 anos atrás. E daí deriva uma pesquisa iconográfica que talvez seja o centro de interesse do filme, na medida em que não abarca apenas o aspecto físico da cidade, ou das pessoas, sua transformação, mas o próprio modo de vida e, sobretudo, o tipo de sentimentos envolvidos e a forma de expressá-los.

Cena do documentário 'Espero que Esta Te Encontre e que Estejas Bem' (2020), dirigido por Natara Ney - Divulgação

A documentarista Natara Ney se espanta ou finge espantar-se com o fato de as pessoas escreverem com tanta fluência e com tão boa letra. Com efeito, numa época em que o ensino público tinha qualidade, quem tinha acesso a ele (a classe média urbana da época) sabia ler e interpretar textos. E cultivava o hábito de escrever, inclusive cartas.

O que mais fascina a documentarista é a distância entre a época em que as relações se davam por carta e o presente. Parece fantástico, mas as pessoas podiam esperar uma semana ou mais por notícias dos namorados, noivos ou parentes. Como conviver com a ansiedade, se pensamos que hoje as trocas de correspondência se dão por WhatsApp ou, na pior das hipóteses, email. São instantâneas, em todo caso. Isso quando a distância não é suprida por conversas com imagens e ao vivo.

Impossível para o documentário não se espantar com a existência de um modo de viver e sentir o mundo totalmente diverso do nosso, mas que se encontra ali mesmo: com pessoas ainda vivas para testemunharem.

"Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem" detém-se em relacionamentos amorosos: como suportar a ausência do ser amado sem receber notícias por tanto tempo? Nisso, é preciso lembrar que as comunicações telefônicas a distância eram caras e demoradas.

Em princípio trata-se de uma viagem um pouco do tipo "hora da saudade" por um mundo extinto. Do tipo, também, já não se faz amor como antigamente. A prova: o casal que trocava cartas há 70 anos e agora se encontra em uma casa de repouso no Rio de Janeiro.

Seriam os sentimentos hoje menos profundos? Eis a questão que o documentário rebate. Pois ele é, ao mesmo tempo, uma carta de amor (nesse sentido parece derivar diretamente do "Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo", de 2009, filme por excelência epistolar), endereçada pela voz feminina que percorre o longa, a um suposto ser amado ausente (e aparentemente perdido).

Ao mesmo tempo que projeta o espectador no enigma do correr do tempo (seja uma semana, seja 70 anos), o filme se pergunta sobre o enigma do fato amoroso: terá ele sido mais intenso e profundo no passado? E a pessoa amada visada pelo discurso do filme (que tanto pode ser como não ser de sua autora) como verá as coisas?

Os dois registros não se encavalam, mas o segundo remete a essa outra instituição da língua: a saudade. O sentimento da ausência do ser amado, a insegurança quanto à hipótese de ser amado, a ansiedade por uma resposta, a dor da perda.

Ou seja, do ponto de vista do documentário —e esse ponto de vista é francamente romântico— o tempo é sempre interminável, quando se espera por uma resposta a essas questões.

Interessante pela pesquisa iconográfica, pela maneira como ora confronta, ora aproxima eras de sensibilidade e de sociabilidade diferentes, menos interessante por um cultivo de nostalgia do nunca vivido, esse documentário se afirma bem por onde se perde: o sentimento amoroso.

"Espero que Esta..." parece festejar, por exemplo, o casal casado há 70 anos como uma espécie de triunfo do sentimento amoroso. Pode ser, mas ao mesmo tempo ignora (embora mostre) o precário da existência humana e de sua trajetória terrena.

Não se pode esquecer, por fim, que a versão mais recente da psicanálise (a de Jacques Lacan) relança o enigma do sentimento amoroso de forma menos otimista, e infinitamente menos romântica, quando pretende que amor não é senão "dar o que não se tem a quem não o pediu".

A busca desse ser ideal, insubstituível, seria a busca por um fantasma —em qualquer era e por qualquer meio de comunicação. Bem menos romântico do que o filme sugere. E algo com que o documentário (e talvez a documentarista) parece não concordar.

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