Quando publicou "Doroteia", em 1949, Nelson Rodrigues encerrava o ciclo de suas peças míticas, ou do teatro desagradável —como ele mesmo nomeou esse período em sua carreira, no qual tramas grotescas e mórbidas eram o motor de suas histórias.
Pouco mais de três décadas depois, Gerald Thomas conheceu a obra do dramaturgo e ficou interessado em levar a sua versão dela aos palcos, mas diz ter sido barrado pela viúva do escritor, morta há cinco anos.
"Talvez por medo de que eu fizesse algo como estou fazendo agora", afirma Thomas, em referência à "F.E.T.O. – Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada", que estreia nesta quarta-feira, no Sesc Consolação, em São Paulo.
Na montagem de Thomas, a trama de "Doroteia" se une às imagens plásticas das obras "No Vento e na Terra 1", do pintor Iberê Camargo, "O Nu Descendo a Escada" e "Roda de Bicicleta", ambas de Marcel Duchamp, e traz no elenco nomes como Fabiana Gugli e Rodrigo Pandolfo.
"Acho ‘Doroteia’ uma peça datada e chata", diz Thomas. "Mas é também muito interessante. À primeira vista, parece moralista e, depois, antimoralista. O Nelson era assim, uma pessoa desbocada, que não seguia o politicamente correto."
Ainda assim, o diretor afirma que, na verdade, conhece pouco sobre o pernambucano, autor de clássicos como "Vestido de Noiva", "Álbum de Família" e "Bonitinha, Mas Ordinária".
Em sua mais nova peça, Thomas se debruça sobre o surrealismo de "Doroteia" e usa a trama como ponto de partida para falar de um futuro-presente sobre figuras femininas.
Na trama original, Doroteia se vê desolada depois da morte do filho, abandona a vida de prostituição e reencontra primas na busca pela virtude, mas é surpreendida por essas familiares que impõem a ela a feiura como uma condição para que esqueçam seu passado pecador.
Em "F.E.T.O.", a história ganha novas camadas e põe foco em passagens fantásticas, como a da personagem que retorna morta ao útero materno só para renascer, desta vez viva. Daí, surgem figuras como a de uma mulher pendurada e a de um corpo se contorcendo dentro de um saco transparente suspenso.
Numa alusão a relações de poder, a peça lembra ainda nomes de algumas mulheres e encena brutalidades contra àquelas que "mesmo no futuro, estarão sempre à frente do tempo", anuncia o narrador. No ensaio visto por esta repórter, o nome da vereadora assassinada Marielle Franco era citado como parte deste grupo feminino —após a publicação deste texto, a reportagem foi informada de que a cena foi excluída. O motivo, porém, não foi revelado.
Thomas conta que, quando decidiu adaptar "Doroteia", foi tomado pela imagem do ser retratado em "No Vento e na Terra 1", de Iberê Camargo, e pelas discussões sobre o direito ao aborto nos Estados Unidos, que pipocaram nas últimas semanas. "No fim das contas, é uma peça que fala do domínio dos homens [sobre o corpo feminino]."
O diretor afirma que, em certa medida, o espetáculo também reflete o Brasil, "um país que sempre tenta nascer, mas continua existindo apenas como feto".
Radicado nos Estados Unidos, o artista tece uma crítica aos brasileiros, dizendo que "lá, apesar de retrocessos, a roda continua a girar, ao contrário do que vemos aqui". "Minha filha nunca sofreu tanto racismo como agora, com o Bolsonaro [no poder]", diz. "É um governo assassino."
O artista defende ainda que, embora o Brasil tenha leis de incentivo à cultura, vive hoje uma onda de desmonte do setor, com crescente desvalorização artística, num movimento que vai da boca do povo aos palanques políticos.
Isso acontece, segundo ele, não só pelo governo atual "ser vingativo e querer cercear a cultura", como também pelo fato de que "os brasileiros não têm o menor respeito pela Constituição federal".
Mesmo fazendo duras críticas, ele cogita voltar a morar no país. "Qualquer lugar que não seja Nova York está valendo. O custo de vida lá é muito alto", diz Thomas, que no ano passado viralizou com um vídeo em que dizia estar sendo despejado de seu apartamento na maior cidade americana.
"É um apelo. Eu preciso vender meus desenhos, minhas pinturas. A situação chegou a um ponto crítico que eu não posso mais aguentar", dizia ele, divulgando alguns de seus quadros à venda, com preços que variavam de R$ 2.000 a R$ 40 mil.
Ele conta que entrou em crise financeira em 2018. "Por culpa minha. Má administração do dinheiro mesmo. Eu tinha casa em muitos países", diz. "No ano passado [depois da repercussão do vídeo], vendi muita coisa, mas ainda não consegui fazer a mudança e, agora, estou sendo despejado de novo."
Thomas, no entanto, continua a esboçar novos projetos dentro e fora dos Estados Unidos. Agora, por exemplo, ele se prepara para dirigir uma peça-filme estrelada pelo ator Marco Nanini e ambientada no Reino Unido.
O ator, segundo Thomas, interpretará sete personagens, numa trama que traz referências a "Um Circo de Rins e Fígados", peça em que os artistas trabalharam juntos em 2005. Sem dar muitos detalhes da obra, o diretor diz que a previsão de início dos trabalhos é o começo do ano que vem.
Enquanto isso, o diretor de "Carmen com Filtro 2" e "The Flash and Crash Days" se volta para "F.E.T.O.", sua terceira produção pandêmica, meses depois de estrear a peça "G.A.L.A." e descobrir que "não é possível romper com Samuel Beckett".
"Eu dizia a todos que aquele seria o meu rompimento com Beckett, mas logo depois percebi que não conseguiria fazer isso. Com grandes gênios, não se rompe."
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