Descrição de chapéu Artes Cênicas

Entenda como Beckett e seus personagens em situações-limite sintetizam a era Covid

Dramaturgo irlandês criou protagonistas confinados e histórias que não se concluem, que dialogam com momento atual

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Cena de 'A Última Gravação de Krapp', de Samuel Beckett Mariano Czarnobai/Divulgação

São Paulo

“O ar fica repleto de nossos gritos, mas o hábito é uma grande surdina”, escreve Samuel Beckett, em sua famosa peça "Esperando Godot". O dramaturgo irlandês evoca ali uma dinâmica que atravessa vários eventos traumáticos, e que parece se repetir durante esse ano pandêmico.

"De certo modo, essa experiência da pandemia mostra para nós que estamos num contexto catastrófico, mas que acabamos nos habituando a isso para não ouvir esse gritos", diz Mario Sagayama, autor de "Ele Fala de Si como de um Outro", livro sobre o dramaturgo.

Mas não é só esse trecho, e nem só essa peça, que mobiliza processos que parecem comuns aos que passam por essa crise sanitária. Com seus vários personagens confinados, histórias que nunca se concluem e montagens feitas para a televisão, Beckett parece sintetizar a pandemia no teatro.

boca sozinha no escuro
Cena de 'Not I', monólogo de Samuel Beckett protagonizado por uma boca (da atriz Billie Whitelaw), filmado pela BBC em 1977; na década de 1980, o próprio dramaturgo dirigiu suas peças para apresentações em canal alemão - Museu de Arte Contemporânea de Barcelona/Reprodução

"Boa parte da recepção de Beckett é atravessada por essa justaposição a catástrofes", afirma Sagayama, que também estudou a obra do dramaturgo em seu mestrado na Universidade de São Paulo.

Muitas de suas obras, inclusive, foram montadas em contextos trágicos —Susan Sontag apresentou "Esperando Godot" em Sarajevo durante a guerra da Bósnia, obra que também foi montada em áreas atingidas pelo furacão Katrina, nos Estados Unidos, e outras peças do diretor foram encenadas em prisões americanas e francesas.

"Leram muito a obra dele como se fosse uma representação alegórica do que se passou na Segunda Guerra Mundial. Isso, em geral, pode ser problemático, porque não é uma alegoria o que acontece ali. Mas como ele põe personagens em situações-limite, suas peças acabam sendo um terreno fértil para essas leituras", afirma o pesquisador.

Diretores se voltaram para obras do irlandês em peças online durante a pandemia no Brasil. Renato Borghi apresentou, de casa, peça que mostra uma dupla isolada no fim do mundo. Em entrevista, Gerald Thomas afirmou que voltará aos textos de Beckett, e que "não há ninguém melhor do que ele para falar dessa reclusão e da catástrofe da morte".

É o caso também do diretor Fábio Ferreira, que apresentou virtualmente "Vozes do Silêncio", trabalho com três monólogos de mulheres encenados pela atriz Carolina Virgüez. Ele lembra que, de maneira geral, Beckett trabalha com a aporia —situações em que necessariamente as coisas não se concluem. "A ideia é deixar vazios. Essa premissa dele acaba captando e se enquadrando em situações muito extremas da humanidade", diz.

Em "Fim de Partida", por exemplo, um dos quatro personagens que estão confinados num bunker narra a seu parceiro cego o que vê fora dali por uma espécie de escotilha. Depois de passar um tempo vendo nada, ele diz que avistou uma criança. Seu perceiro responde "que terror". "Ou seja, sobreviveremos e isso vai continuar", diz o diretor.

Ferreira lembra ainda o fato de que várias cenografias de Beckett, assim como em "Fim de Partida", são espaços de exceção e de confinamento. "A pandemia é uma situação beckettiana. Parece que a gente se tranca dentro de um bunker e tudo no entorno, a natureza e as realizações humanas, é relativizado."

As três peças curtas apresentadas em "Vozes do Silêncio" já estavam sendo trabalhadas pela equipe antes da pandemia. Segundo a atriz Carolina Virgüez, essa narrativa fragmentada ganhou mais uma camada com a pandemia, principalmente pela constante falha da comunicação humana nas obras do dramaturgo.

"Esse texto sempre foi muito vigente por conta dessa incomunicabilidade que Beckett traz, e essa pergunta constante em relação a nossa existência agora ganha um relevo muito maior porque nós estamos em espaços de confinamento", diz. "Estamos numa situação de imobilidade. O pensamento sai desordenado porque ele perdeu, de alguma maneira, as âncoras e as estruturas."

Luiz Fernando Ramos, professor do departamento de artes cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, discorda, no entanto, que essa aproximação de Beckett com a pandemia se dê pelos assuntos tratados em sua obra, como a ideia de solidão, confinamento e de espera dos personagens. "Acho que ele é pertinente em qualquer circunstancia", afirma.

Ramos lembra, em todo caso, uma experiência do diretor com peças montadas para um canal alemão de televisão nos anos 1980 que pode dialogar com a discussão sobre o teatro virtual nesse último ano. "Uma questão que supostamente é crucial no teatro é a presença, a simultaneidade entre quem apresenta e quem a vê, e os riscos dessa simultaneidade —que, em último caso, alguém pode morrer", ele diz.

Canais como a BBC já montavam algumas peças do dramaturgo, mas, na TV alemã, foi a primeira vez que o próprio Beckett dirigiu as montagens, como as de "Not I", "Quad" e "What Where". Com isso, defende Ramos, ele mostra que é possível construir uma linguagem cênica por meio da televisão, até um tanto independente dessa premissa da simultaneidade entre diretor e público —possibilidade que atravessou todo o teatro durante a pandemia.

"Beckett resolve experimentar essa linguagem, é como mais um passo. Ele já tinha ido da literatura para o teatro, já tinha esgotado o teatro, a e televisão apareceu como uma oportunidade", diz. "Elas são o registro mais fiel desse último teatro do Beckett totalmente autoral. É uma espécie de testemunho a que podemos assistir com o mesmo frescor."

O dramaturgo, segundo Ramos, chamava a experiência de "peephole", uma arte vista como quem a olha através de um olho mágico. Mas é também um jogo com a ideia de uma arte que é das pessoas ("people") e popular, diz o professor.

O diretor Fábio Ferreira lembra ainda uma cena de um dos textos tardios de Beckett que, segundo ele, sintetizam as angústias e disputas do nosso tempo. Em "O Despovoador", criaturas vivem dentro de um tubo de ensaio numa narrativa distópica, e todas tentam escapar por escadas, como numa recriação do inferno dantesco.

"É um pouco a situação que vejo hoje na pandemia", diz Ferreira. "Todos querendo subir pequenas escadas —uns querendo passar por cima dos outros, outros aguardando de forma mais disciplinada."

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