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Artes Cênicas

Brasil de Bolsonaro é costurado pelo sexo no espetáculo 'O Balcão'

Peça de Jean Genet encenada por Ruth Escobar em 1968 ganha uma nova montagem no Rio de Janeiro com ecos do país atual

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O terceiro sinal ainda não soou no Teatro de Arena do Sesc Copacabana. "O Balcão", porém, já se apresenta ali. No cenário vazio do bordel onde se passa a história, a sombra em forma de losango projetada no chão sobre o círculo negro no centro do tapete vermelho forma um jogo geométrico que emula a bandeira do Brasil.

A imagem em negativo no chão sintetiza e anuncia as intenções da montagem do diretor Renato Carrera para o texto de Jean Genet —o retrato da estrutura de uma nação sustentada num jogo de sombras que, ao mesmo tempo, esconde e revela.

Cena da peça "O Balcão", em cartaz no Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro
Cena da peça 'O Balcão', em cartaz no Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro - Sabrina Paz/Divulgação

Idealizada por Carrera ao lado de Alexandre Barros e Carmen Frenzel, a montagem que se vê no teatro carioca, em cartaz até 31 de julho, dialoga com a clássica encenação produzida por Ruth Escobar e dirigida por Victor García em 1968.

Embora não exista a grandiosidade daquela montagem —na época, o teatro em São Paulo passou por uma reforma que durou meses e redefiniu todo o espaço cênico, com uso de elevadores e cabos de aço–, a estrutura de arena e o arcabouço metálico são preservados agora no Sesc Copacabana.

E, a despeito das diferenças históricas entre o momento do AI-5 e este que o país atravessa agora, em essência é o mesmo Brasil que aparece como alegoria em ambas –um teatro de poder de personagens igualmente patéticos e perversos, agentes do autoritarismo que mantém oprimidos os oprimidos.

Escrito em 1956, o texto de Genet guarda sua atualidade por se ater a figuras paradigmáticas da sociedade burguesa. A peça, que ganha tradução inédita de Angela Leite Lopes, se passa numa casa de prostituição de luxo, o Grande Balcão, onde o núcleo do Estado se manifesta como fantasia nos clientes. Na montagem atual, são eles o Juiz, papel de Alexandre Barros, o General, vivido por Ivson Rainero, o Chefe de Polícia, papel de José Karini, e o Bispo, vivido por Ricardo Lopes.

No comando do bordel está Irma, papel de Carmen Frenzel, cercada por subordinados vividos por Andreza Bittencourt, Fernanda Sal, Jean Marcel Gatti, Lucas Oradovschi e Yumo Apurinã —alguns deles se dividindo em mais de um papel.

A cafetina domina as regras do jogo de simulacros, que se equilibra o tempo inteiro numa fronteira indefinida entre encenação e real, seja pelos avatares das redes sociais, seja pela manipulação do noticiário, seja pela redução dos grandes debates nacionais a hashtags, seja pelas "mentiras oficiais" sistematicamente pronunciadas pelo governo e seus apoiadores.

Nesse cenário, tudo é farsa e documento. Sensação comum a quem acompanha diariamente a cobertura política do Brasil contemporâneo. Uma cena como a coreografia catatônica do General sobre a repetição do lema "ordem e progresso", por exemplo, ecoa as danças das manifestações a favor do impeachment de Dilma Rousseff.

"O Balcão", peça em cartaz no Rio
"O Balcão", peça em cartaz no Rio - Divulgação

Nesse bordel-Estado, o sexo é esvaziado de sua natureza e se manifesta no papel de simples perversão em prol da manutenção do poder. É ilustradora nesse sentido a fala do Juiz a uma prostituta –"o meu ser de Juiz é uma emanação do teu ser de ladra".

O único objeto cênico é uma cadeira de cabeleireiro, que serve a diferentes propósitos e concentra em si o fantasioso, o épico e o ridículo —uma erupção do absurdo de um Duchamp (e de um Genet) que dá ainda mais peso à proposta de harmonia bizarra que se manifesta ali. A trilha sonora de Gustavo Benjão dá densidade ao absurdo e ao harmônico dessa atmosfera.

O grande acordo nacional é cortado pela revolução que se anuncia em sirenes, rajadas e explosões vindas do lado de fora. A resistência é encarnada em grande medida na figura de uma prostituta que na montagem atual é uma indígena transexual, vivida por Yumo Apurinã.

É a personagem quem corta de maneira mais direta o tecido que separa a alegoria do Brasil atual, ao lembrar figuras como Galdino Jesus dos Santos, pataxó que morreu queimado por jovens de classe média em Brasília em 1997, Tibira do Maranhão, tupinambá assassinado no século 17 por sua orientação sexual, a menina yanomami de 12 anos estuprada e morta por garimpeiros recentemente, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, mortos na Amazônia.

A certa altura, o hino da Independência é cantado de forma ora grave com efeitos cômicos, ora jocosa com efeitos dramáticos. Solenidade e pastiche em mistura indistinguível, solo fronteiriço sobre o qual se ergue "O Balcão", a nação.

O Balcão

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