Descrição de chapéu The New York Times

Fitas secretas revelam face obscura de Eichmann que ficou fora do tribunal

Provas de que homem não era só uma engrenagem do nazismo vêm a público mais de 60 anos após o julgamento em Jerusalém

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Isabel Kershner
Tel Aviv | The New York Times

Seis décadas depois do histórico julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais engenheiros do Holocausto, em Jerusalém, uma nova série de documentários israelense oferece uma culminação dramática –as confissões jactanciosas do criminoso de guerra nazista, em sua própria voz.

As horas de gravações em fita, que foram negadas aos procuradores públicos israelenses na época do julgamento de Eichmann, formam a base para uma série chamada "The Devils’s Confession: The Lost Eichmann Tapes", ou a confissão do Diabo, as fitas perdidas de Eichmann, que vem despertando interesse intenso em Israel desde que começou a ser exibida, no mês passado.

O nazista Adolf Eichmann, que foi responsável pelo transporte de milhões de judeus aos campos de extermínio nazistas - Reprodução

As gravações terminaram em poder de proprietários privados, depois que foram feitas em 1957 por um nazista holandês, e mais tarde foram parar em um arquivo do governo alemão, que em 2020 deu aos criadores da série israelense, o produtor Kobi Sitt e o diretor Yariv Mozer, permissão para usar as gravações.

Eichmann foi executado insistindo em que era apenas um funcionário que estava cumprindo ordens e negou qualquer responsabilidade pelos crimes dos quais foi considerado culpado. Descrita como apenas uma pequena peça no aparato estatal encarregado de organizar o transporte ferroviário, a mediocridade que ele professava deu origem à teoria da filósofa Hannah Arendt sobre a banalidade do mal.

Imagens do julgamento de Adolf Eichmann em 1961 em exposição em Jerusalém
Imagens do julgamento de Adolf Eichmann em 1961 em exposição em Jerusalém - Avishag Shaar-Yashuv/The New York Times

A série de documentários intercala as palavras enregelantes de Eichmann em defesa do Holocausto, em alemão, a encenações que reproduzem reuniões de simpatizantes nazistas em Buenos Aires, em 1957, onde as gravações foram feitas.

Expondo o antissemitismo visceral e ideológico de Eichmann, seu zelo por caçar judeus e seu papel na mecânica do homicídio em massa, a série apresenta pela primeira vez ao grande público provas que ficaram de fora do julgamento.

Há um momento em que se pode ouvir Eichmann matando uma mosca que zumbia pela sala e a descrevendo como um inseto "de natureza judaica".

Ele disse aos seus interlocutores que "não se incomodava" em saber se os judeus que enviava a Auschwitz viveriam ou morreriam. Tendo negado seu conhecimento sobre o destino deles, durante o julgamento, nas fitas ele declara que a ordem era de que "judeus aptos a trabalhar deviam ser forçados a trabalhar, judeus inaptos a trabalhar deviam ser enviados para a 'Solução Final', ponto", o que significa destruição física.

"Se tivéssemos matado 10,3 milhões de judeus, eu diria, com satisfação, que, ‘bom, destruímos um inimigo’. Assim teríamos cumprido nossa missão", ele disse, se referindo a todos os judeus da Europa.

Mozer, o diretor e também um dos roteiristas da série, neto de sobreviventes do Holocausto, disse que "isso serve como prova contra aqueles que negam o Holocausto, e é uma forma de mostrar a verdadeira face de Eichmann".

Kobi Sitt, produtor do documentário 'The Devil's Confession', no auditório que foi usado como tribunal de Adolf Eichmann em 1961
Kobi Sitt, produtor do documentário 'The Devil's Confession', no auditório que foi usado como tribunal de Adolf Eichmann em 1961 - Avishag Shaar-Yashuv/The New York Times

O julgamento de Eichmann aconteceu em 1961, depois que agentes do serviço de espionagem israelense, o Mossad, o sequestraram na Argentina e o transportaram a Israel. Depoimentos chocantes de sobreviventes e os imensos horrores do Holocausto foram delineados em detalhes brutais, para os israelenses e o restante do planeta.

O tribunal dispunha de vasta documentação e de numerosos depoimentos sobre os quais basear sua condenação de Eichmann. A promotoria também havia obtido mais de 700 páginas de transcrições das gravações feitas em Buenos Aires, com correções anotadas na letra do próprio Eichmann.

Mas o acusado afirmou que as transcrições distorciam suas palavras. A Corte Suprema de Israel não as aceitou como prova, excetuadas as notas manuscritas, e Eichmann desafiou o procurador público que chefiava a acusação, Gideon Hausner, a mostrar as fitas originais, por acreditar que estavam bem escondidas.

Em seu relato sobre o julgamento, "Justice in Jerusalem", Hausner relatou seus esforços para tentar obter as gravações até o último dia de inquirição de Eichmann no tribunal, afirmando que "ele dificilmente teria podido negar aquilo que foi dito com sua própria voz".

Hausner escreveu que as gravações tinham sido oferecidas a ele por US$ 20 mil, uma quantia imensa na época, e que ele estava preparado para autorizar o gasto, "considerando sua importância histórica". Mas o vendedor, não identificado, impôs a condição de que elas só fossem levadas a Israel depois do julgamento, disse Hausner.

Visitantes do Museu Auschwitz-Birkenau Museum na Polônia em julho de 2019
Visitantes do Museu Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em julho de 2019 - Maciek Nabrdalik/The New York Times

As gravações foram realizadas por Willem Sassen, jornalista holandês que foi oficial da SS nazista e trabalhou como propagandista para a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Parte de um grupo de fugitivos nazistas refugiados em Buenos Aires, ele e Eichmann decidiram iniciar o projeto de gravações com o objetivo de publicar um livro depois da morte de Eichmann. Membros do grupo se reuniam durante horas a cada semana na casa de Sassen, para beber e fumar.

E Eichmann falava e falava.

Depois da captura de Eichmann pelos israelenses, Sassen vendeu as transcrições à revista americana Life, que publicou uma versão resumida do documento, em dois números da publicação. Hausner descreveu a versão publicada como "saneada".

Depois da execução de Eichmann, em 1962, as gravações originais foram vendidas a uma editora europeia, e por fim terminaram em poder de uma empresa que optou por se manter anônima e depositou as fitas no arquivo federal alemão em Koblenz, com instruções de que só fossem usadas para pesquisas acadêmicas.

Bettina Stangneth, filósofa e historiadora alemã, baseou parcialmente o seu livro "Eichmann Before Jerusalem", ou Eichmann antes de Jerusalém, de 2011, nas gravações. As autoridades alemãs liberaram alguns minutos das gravações para o público, mais de duas décadas atrás, "a fim de provar que elas existiam", segundo Mozer.

Sitt, o produtor do novo documentário, fez um filme sobre Hausner para a televisão israelense 20 anos atrás. A ideia de obter as gravações de Eichmann o interessava desde então, ele disse. Como o diretor, Mozer, ele é israelense e neto de sobreviventes do Holocausto.

"Não tenho medo da memória; tenho medo do esquecimento", disse Sitt, sobre o Holocausto, acrescentando que ele desejava "fornecer uma ferramenta que insufle vida à memória", agora que a geração dos sobreviventes está desaparecendo.

Ele procurou Mozer depois de assistir a "Ben-Gurion: Epilogue", um documentário que o colega produziu em 2016, baseado em gravações com o primeiro-ministro fundador de Israel, que tinham ficado perdidas por muito tempo.

As autoridades alemãs e os proprietários das fitas deram aos documentaristas acesso às 15 horas de gravações sobreviventes. (Sassen tinha realizado cerca de 70 horas de gravações, mas regravou muitas das fitas, que eram caras, depois de as transcrever.) Mozer disse que os proprietários das fitas e o arquivo haviam por fim concordado em dar acesso à equipe por acreditar que eles tratariam o material de forma respeitosa e responsável.

Local em Jerusalém onde Adolf Eichmann foi julgado em 1961
Local em Jerusalém onde Adolf Eichmann foi julgado em 1961 - Avishag Shaar-Yashuv/The New York Times

O projeto cresceu e se transformou em uma produção de quase US$ 2 milhões em parceria entre a Metro-Goldwyn-Mayer; Sipur, uma companhia israelense antes conhecida como Tadmor Entertainment; Toluca Pictures; e a rede de TV pública israelense Kan 11.

Uma versão de 108 minutos do documentário estreou como filme de abertura do Docaviv, um festival de documentários em Tel Aviv, no trimestre passado. Em junho, uma versão de 180 minutos foi exibida em três episódios em Israel. A Metro-Goldwyn-Mayer está procurando parceiros para licenciar e veicular a série em todo o mundo.

As conversas na sala da casa de Sassen são entremeadas de imagens de arquivo e entrevistas com participantes sobreviventes do julgamento. As imagens de arquivo foram colorizadas, disseram os realizadores, porque os jovens veem imagens em branco e preto como irreais, como se viessem de outro planeta. Para quem ouve as fitas agora, as confissões escancaradas de Eichmann são chocantes.

"É uma coisa difícil, o que estou contando", Eichmann diz na gravação. "E sei que serei julgado por isso. Mas não posso dizer qualquer coisa de diferente. É a verdade. Por que eu a negaria?" "Nada me irrita mais", ele acrescentou, "do que uma pessoa que mais tarde nega aquilo que fez".

Tradução de Paulo Migliacci

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