Descrição de chapéu Livros

Imigrante sírio gay desbrava São Paulo no romance de estreia de Diogo Bercito

Jornalista transborda sua pesquisa sobre o Oriente Médio para a ficção no livro 'Vou Sumir Quando a Vela se Apagar'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Já depois de algum tempo de emigrado, Yacub passa a pensar no Brasil e na Síria como se fossem um só lugar, "um território estendido por cima do mar, uma pele esticada ao limite para cobrir toda a carne".

É uma das passagens líricas mais inspiradas em que seu autor, o jornalista e pesquisador Diogo Bercito, ilustra as sensações que acometiam os imigrantes do início do século passado —mergulhados na dualidade entre suas terras de origem e destino, que na verdade compunham uma só memória.

homem sentado em cadeira e queimando
Ilustração de capa do livro 'Vou Sumir Quando a Vela se Apagar', de Diogo Bercito - Robinho Santana/Divulgação

"É um dilema muito típico dos migrantes desse período específico", diz, em referência à década de 1930, sobre a qual estuda e escreve. "'A que território eu pertenço?' Os nacionalismos ainda estavam muito desenvolvidos e, apesar de viver no Brasil, eles ainda se viam como parte da nação dos sírios ou libaneses."

O jovem Yacub está no centro de "Vou Sumir Quando a Vela se Apagar", ficção que o acompanha desde sua decisão de se desgarrar das fronteiras do vilarejo onde nasceu, movido por um trauma romântico dos mais trágicos, até sua peregrinação pelas ruas e estradas de São Paulo, retratada numa meticulosa reconstituição histórica.

Aqui vale contextualizar que a história do garoto sírio —ou brasileiro?— é o primeiro romance de Bercito, que colabora com este jornal há 15 anos e faz doutorado em história na Universidade Georgetown, em Washington, depois de se tornar mestre em estudos árabes em Madri.

Não é surpresa que seu objeto de pesquisa seja a presença de sírios e libaneses em São Paulo, uma produção que já tinha transbordado os muros universitários e rendido "Brimos", obra editada pela Fósforo que conta como essas árvores genealógicas se enraizaram na política brasileira. Agora a investigação rende seus primeiros frutos ficcionais, e eles não caem muito longe do pé.

"Mas eu me peguei imaginando coisas que não teriam me ocorrido na dissertação", afirma o escritor de 34 anos. "Quando Yacub chega à estação da Luz, tive que pensar quanto demoraria para ele andar a pé até a rua 25 de Março. Como seria esse caminho? O que essa pessoa veria? Que tipo de comida comeria ali? São questões raras de aparecer na pesquisa e que certamente vão alimentar meu trabalho acadêmico."

Ao mesmo estilo dos espantos literários, o romance tomou rumos que Bercito não previu. A inspiração original para Yacub era seu bisavô, "uma figura meio mitológica" sobre a qual sua família sabia pouquíssimo —apenas que tinha se envolvido com uma espanhola chamada Remedios, que deu à luz sua avó.

Remedios é uma personagem no livro, mas o protagonista não tem um caso com ela —no lugar, se apaixona aos poucos por Jurj, seu entusiasmado colega de quarto.

"Eu nunca pensei nesse livro como um romance LGBT, mesmo que seja recebido assim pelos leitores", diz o autor. "Não planejei que Yacub sentisse atração pelos amigos dele. E foi difícil escolher palavras para isso num contexto em que as pessoas não tinham nem sequer a opção de se identificar como homossexuais."

O escritor lembra que, durante seu mergulho em arquivos e jornais da época, não encontrou qualquer indício sobre a vida de imigrantes homossexuais no Brasil. "Um silêncio total. E é claro que eles existiram e que tiveram relações durante a diáspora, mas não deixaram resquícios. A ficção acaba sendo a única saída para um impasse histórico como esse."

Essa não é sua única liberdade poética das evidências empíricas. Pelo contrário, "Vou Sumir Quando a Vela se Apagar" é um romance que pende ao fantástico, quase ao fabular, com a figura mítica dos "jinni" —que a cultura popular brasileira incorporou como "gênios"— cumprindo um papel essencial.

O onírico aparece sem prejuízo à concretude jornalística de outras passagens do livro, remetendo a um lirismo que Bercito já identificava nas suas primeiras incursões literárias da adolescência —que, aos poucos, foi deixando de lado em prol da reportagem, excetuados dois roteiros de quadrinhos.

"A ficção tem uma aura que o jornalismo não tem, de que ou você é capaz de fazer ou não é. Naquele momento, mais jovem, eu acreditei que não era e demorou bastante tempo para desconstruir. Acho que hoje tenho menos medo de dar a cara a bater."

VOU SUMIR QUANDO A VELA SE APAGAR

  • Preço R$ 54,90 (216 págs.); R$ 26,90 (ebook)
  • Autoria Diogo Bercito
  • Editora Intrínseca
  • Lançamento Quinta (21), às 19h na Livraria Megafauna, em conversa com o jornalista Chico Felitti
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.