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Woody Allen em 'Zero Gravity' brilha em textos com um humor invejável

Reunião de textos publicados na New Yorker, mesmo com as obsessões de sempre, lembra que nós 'precisamos dos ovos'

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João Pereira Coutinho

Woody Allen afirmou recentemente, numa entrevista com Alec Baldwin, que o seu próximo filme pode ser o último. Lamentei. Woody Allen só dirigiu 50 filmes. Por que não fazer mais 50? Os egoístas são assim —não pensam no muito que têm, só naquilo que não têm.

E, no entanto, 50 filmes são 50 filmes. Sem falar do resto –Woody Allen é um dos grandes escritores contemporâneos. Os livros que deixou —seis, pelas minhas contas— dão para uma vida inteira de gargalhadas.

Woody Allen e Diane Keaton em cena do filme 'Manhattan', de 1979
Woody Allen em cena do filme 'Manhattan', de 1979 - Divulgação

De mim falo —comecei a rir com "Cuca Fundida", de 1971; continuei com "Sem Plumas", de 1975; fui às nuvens com "Que Loucura!", de 1980; tive que receber tratamento médico para os músculos do rosto com "Pura Anarquia", de 2007; e agora, com o mais recente "Zero Gravity", preciso de ajuda psiquiátrica —a minha inveja atingiu níveis homicidas.

Havia sinais. A primeira parte da sua autobiografia de 2020, "Apropos of Nothing", ou a propósito de nada —ou simplesmente "Woody Allen: A Autobiografia" como saiu no Brasil—, é tão boa que destruí o livro num acesso de raiva.

"Zero Gravity" reúne os textos que Allen foi publicando na revista New Yorker e ainda oferece um conto final e original, "Growing Up in Manhattan" que é a Capela Sistina de Woody Allen.

Os textos curtos revisitam os temas do seu afeto. Se há algo que une o humor de Woody Allen é o seu intelectualismo anti-intelectual. Ou, resumindo, a forma como usa a alta cultura para parodiar os esnobes da alta cultura.

Em "Udder Madness" encontramos uma vaca que tenta matar um dramaturgo pretensioso que confunde Schubert com Schumann; em "Buffalo Wings, Woncha Come Out Tonight", um ator em decadência encontra uma nova carreira ensinando galinhas a escrever roteiros para Hollywood. Os roteiros, escusado será dizer, são um sucesso e ganham vários prêmios.

Pelo meio, ainda há espaço para a odisseia do duque de Windsor (que procura encontrar um nó revolucionário de gravata) e o destino amargo de dois amigos judeus que, depois de serem enganados por Bernie Madoff —ex-magnata de Wall Street que conduziu uma das maiores pirâmides financeiras da história—, morrem de desgosto e reencarnam em duas lagostas. Levados para o tanque de um restaurante chique de Manhattan, estão prontos para serem servidos —ao próprio Madoff.

Claro, algumas histórias, no clima pós-Me Too, serão lidas com reprovação por pessoas que perderam, ou nunca tiveram, sentido de humor. Em frente do pelotão de fuzilamento está o brilhantíssimo "O Verdadeiro Avatar Por Favor Queira Subir ao Palco", uma meditação sobre as proezas sexuais de Warren Beatty.

Foram mais de 12 mil mulheres, segundo o seu biógrafo, e Allen decide partilhar o relato de uma delas. Ficamos a saber que Warren Beatty é "uma combinação de Heathcliff com Secretariat" —e se você não sabe quem foi Secretariat, o Google existe para isso mesmo (e este é um jornal de família).

Porém, os sexualmente inseguros podem ficar descansados —as 12 mil mulheres de Beatty só foram possíveis porque o ator usava um duplo para os preliminares e para a conversa pós-coital.

E assim chegamos a "Growing Up in Manhattan", que deve ser lido ao som de Sidney Bechet (posso sugerir "All of Me"?). É um texto nitidamente autobiográfico sobre um rapaz de Coney Island que decide tentar a sorte em Manhattan como autor, apesar de aprisionado a um casamento infeliz.

Tudo muda quando ele conhece a mulher perfeita, e perfeitamente desequilibrada, com quem viaja da ilusão para o desencanto. Haverá tema mais perene na obra de Woody Allen?

Não creio. As ilusões dele são as nossas de todos os dias. Os desencantos também. Mas, como na piada de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", ninguém quer internar aquele membro da família que julga que é uma galinha. No fim das contas, todos precisamos dos ovos.

Zero Gravity

  • Preço US$ 26,99 (216 págs.); US$ 19,99 ou R$ 94,90 (ebook)
  • Autoria Woody Allen
  • Editora Arcade Publishing
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