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Tony Goes

Novelas bíblicas são ruins demais para serem patrimônio cultural

Cercado de interesses eleitorais, projeto de lei ignora que produções como 'Vale Tudo' e 'Avenida Brasil' mereciam mais

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São estarrecedoras as notícias que chegam do Rio de Janeiro. Como que o estado cuja capital, berço das escolas de samba, da bossa nova, do cinema novo e de tantas outras vanguardas, agora considera as novelas bíblicas produzidas lá como seu "patrimônio cultural imaterial"?

O projeto de lei dos deputados estaduais Tia Ju, Carlos Macedo, Danniel Librelon e Rosenverg Reis tramitava desde 2019. Aprovado em plenário, foi sancionado nesta quinta (30) pelo governador Claudio Castro.

O ator Dudu Azevedo vive Jesus Cristo na novela 'Jesus' - Edu Moraes/Record TV

É flagrante o desejo de agradar ao segmento neopentecostal, ainda mais em ano de eleições. Castro quer ser reconduzido ao posto em novembro. Além disso, três dos parlamentares envolvidos são ligados à Igreja Universal do Reino de Deus, controladora da Record —a única emissora de TV que produz novelas bíblicas. Isto torna óbvia a tentativa de dar ao canal um prestígio que ele jamais conseguiu entre os críticos.

Para completar o disparate, as novelas bíblicas costumam ser muito, mas muito ruins mesmo. É verdade que a qualidade de produção subiu bastante desde que o primeiro exemplar do gênero, a minissérie "A História de Ester", estreou em 2010. Mas ainda persistem os cenários capengas, os diálogos canhestros, os atores sofríveis. Sem falar na falta de diversidade: a Terra Santa mostrada nesses folhetins parece ter sido povoada por tribos germânicas.

Os próprios autores assumem que se trata de uma dramaturgia funcional. O objetivo maior não é entreter o público, mas convertê-lo. Essa inversão de prioridades faz com que, muitas vezes, o resultado saia pesado, e pouquíssimo palatável para o espectador leigo.

Na prática, a nova lei não muda muita coisa. Até porque, como ressalta reportagem de Carolina Moraes publicada neste jornal, especialistas na área apontam que processos de registro pelo Legislativo são superficiais. Só as iniciativas que partem do Executivo, que conta com um corpo técnico especializado, garantem que o bem cultural em questão realmente será protegido pelo Estado.

Mas a carga simbólica dessa nova lei é terrível. É um aceno inapropriado do poder público a uma denominação religiosa. Um golpe a mais no muro que ainda separa Estado e Igreja (ou igrejas). A laicidade escorre pelo bueiro. Falta muito para uma lei que obrigue todos os cidadãos a se tornarem evangélicos? A pagar o dízimo para a Universal?

É irônico, além do mais, lembrar que não faltam novelas que poderiam ser consideradas manifestações culturais genuinamente fluminenses. Que foram escritas, dirigidas e atuadas por gente que nasceu no estado. Com histórias que não só se passam por lá, como refletem a dor e a delícia de viver no Rio de Janeiro: a praia, a criminalidade, a descontração, o jogo do bicho, as favelas, o samba, o futebol, as inúmeras mazelas sociais.

Custo a acreditar que uma porcaria como "Todas as Garotas em Mim", a pior produção da teledramaturgia brasileira de 2022 —até o momento—, possa ser considerada um patrimônio cultural. Enquanto isto, obras-primas como "Vale Tudo" e "Avenida Brasil", quem têm não só uma ligação visceral com o Rio de Janeiro, como também integram o DNA cultural do Brasil de hoje, não são.

Isto para ficarmos nas novelas de acentuado sabor carioca. O que dizer então de títulos como "Roque Santeiro", "Pantanal", "Guerra dos Sexos" e tantas outras, produzidas em terras fluminenses, mas ambientadas em outros rincões do país?

Há algumas décadas que as novelas são a mais importante manifestação cultural brasileira. Tanto pelo enorme alcance —o filme de maior bilheteria só atinge uma fração do público de uma novela— como pela capacidade de se transformar num fórum de discussão, em que o Brasil se vê no espelho e discute temas como divórcio, aborto e casamento gay.

As novelas bíblicas passam longe disso. Não funcionam nem mesmo como entretenimento escapista. O fato de agora serem consideradas patrimônio cultural imaterial do estado do Rio de Janeiro, e de a Alerj ter aprovado essa lei, é só mais um sintoma da nossa doença atual. Que a cura não demore.

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