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Como o crime de Guilherme de Pádua mudou o rumo das novelas de Gloria Perez

Luto pela morte de Daniella Perez fez roteirista inserir o tema da morosidade da Justiça e da impunidade em folhetim

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Danilo Cymrot

Doutor em criminologia pela USP e autor do livro “O Funk na Batida: Baile, Rua e Parlamento”

Em um dos vários momentos comoventes do depoimento de Gloria Perez para a série "Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez", a autora de telenovelas diz que sabe, racionalmente, que não poderia se culpar pela morte da filha, mas que "quando você é mãe, você acha que tem superpoderes".

Gilberto Gil relata que escreveu "Super-Homem – A Canção" impactado pela narrativa de Caetano Veloso sobre o filme com Christopher Reeve, principalmente pela imagem do Super-Homem fazendo a Terra girar ao contrário em seu movimento de rotação, a fim de fazer voltar o tempo e salvar a mulher amada. São dessa canção os versos "quem sabe/ o Super-Homem venha nos restituir a glória/ mudando como um deus o curso da história/ por causa da mulher?".

A novelista Glória Perez, filmada na minissérie documental 'Pacto Brutal', sobre o assassinato de sua filha, Daniella Perez
A novelista Glória Perez, filmada na minissérie documental 'Pacto Brutal', sobre o assassinato de sua filha, Daniella Perez - Divulgação

Em outro depoimento comovente para a série, Gloria relata que, quando soube do assassinato da filha, implorou para os deuses de todas as religiões e até para seres extraterrestres que voltassem o tempo, a fim de que pudesse salvar Daniella.

Em sua novela "O Clone", de 2001, a personagem Diogo morre muito jovem em um desastre de helicóptero. Seu tema musical era justamente "Love in the Afternoon", da Legião Urbana, com os versos "É tão estranho/ Os bons morrem jovens/ Assim parece ser/ quando me lembro de você/ que acabou indo embora/ cedo demais".

Inconformado com a morte de seu afilhado e dilacerado pela dor, a sensação de impotência e de fragilidade da vida humana, a personagem Doutor Albieri resolve "desafiar Deus", corrigir os rumos da história e criar um clone de Diogo, a partir das células de seu irmão gêmeo univitelino. Após obter êxito, o cientista diz que conseguiu vencer a morte e o tempo.

Há crimes que marcam gerações. Se no Brasil temos o caso Daniella Perez, Hollywood tem o caso Sharon Tate para chamar de seu. Apesar de serem casos completamente distintos, em ambos duas atrizes famosas e jovens foram assassinadas de maneira brutal a golpes de arma branca. Quentin Tarantino reescreveu a história em "Era uma Vez em... Hollywood", lançado em 2019, quebrando expectativas, misturando ficção e realidade e, numa linda homenagem ao cinema, salvando Sharon Tate justamente por meio da linguagem cinematográfica, com o poder do roteiro.

De certa forma, ao construir mundos paralelos, o roteirista não deixa de ser um deus, ainda que não onipotente, uma vez que fatores extraficção podem acabar interferindo e mudando o rumo da história em direção a caminhos que o roteirista definitivamente não desejava.

Em dezembro de 1992, o ex-ator Guilherme de Pádua, que infartou e morreu neste domingo (6), queria interferir nos rumos da novela "De Corpo e Alma" para ampliar a presença de sua personagem, Bira. Ao matar junto de sua então mulher, Paula Thomaz, sua colega de cena Daniella Perez, filha da autora da novela, para além de destruir vidas no mundo real, mudou também definitivamente os rumos da ficção, fazendo com que a personagem de Daniella, Yasmin, viajasse para estudar dança e Bira simplesmente desaparecesse da trama.

Se a realidade pode impor mudanças na ficção, por outro lado a ficção também pode ajudar a mudar a realidade. O luto pelo assassinato da filha fez com que Gloria Perez não apenas travasse na dura realidade a luta para inserir o homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos, mesmo ciente de que a mudança legislativa não alcançaria os assassinos de sua filha, como inserisse o tema da morosidade da Justiça e da impunidade na parte final de "De Corpo e Alma", por meio da personagem do ator Tarcísio Meira, um juiz de direito.

Gloria Perez, assim como outros autores de novela, sabe bem o poder e a responsabilidade que tem ao escrever o produto mais consumido pelos brasileiros em TV aberta, no horário nobre. É inegável o poder da telenovela para influenciar a longo prazo a cultura ou pelo menos pautar temas nas conversas do dia a dia. Não por outra razão, bolsonaristas acusam a teledramaturgia da TV Globo de querer destruir os "valores da família".

Ainda que Gloria Perez já fizesse merchandising social, inclusive em "De Corpo e Alma", que incentivou a doação de órgãos, o assassinato de Daniella pode ter influenciado os temas abordados por Gloria a partir de então, ainda que indiretamente, o que é mais do que natural, tendo em vista que o artista bebe de diversas fontes para se inspirar, inclusive de episódios de sua própria vida.

Em sua primeira novela após o assassinato de Daniella, "Explode Coração", de 1995, Gloria abordou o tema das crianças desaparecidas. Na época, o tema também estava presente nos telejornais, como relata Ivan Mizanzuk no podcast "O caso Evandro", muitas vezes de forma espetacularizada, mas no caso de "Explode Coração" ocorria o fenômeno contrário. Não se tratava da realidade novelizada, mas da realidade invadindo a ficção. Já que não podia trazer sua filha de volta, Gloria permitiu que ao menos muitas crianças fossem localizadas e devolvidas a suas mães, colocando suas fotos na novela.

Julgando a lei leniente demais com os assassinos, Gloria Perez usou o poder que estava às suas mãos para compartilhar sua revolta e reagir, ainda que indiretamente, ao crime sofrido por sua filha. Se em 2014 escreveu "Dupla Identidade", uma série que tinha como protagonista um psicopata, no ano anterior, a vilã Wanda, da novela "Salve Jorge", após cometer barbaridades, se converteu ao protestantismo na prisão, exatamente o que ocorreu com um dos assassinos de Daniella.

Apesar de o assassinato de Daniella Perez ter alimentado narrativas homofóbicas —o assassino teria sido stripper e michê— e que, assim como no caso Evandro, criminalizavam religiões de matriz africana, Gloria Perez condena essas narrativas, seja afirmando categoricamente que a imagem de uma entidade que os assassinos tinham não era de um Preto Velho, seja contemplando sempre em suas novelas a diversidade sexual.

Gloria Perez inclusive fica indignada na série com uma fala de Guilherme de Pádua, em que ele aparenta se incomodar mais com a fama de homossexual do que com a fama de assassino. Ironicamente, na mesma novela em que Guilherme trabalhava, uma das personagens era stripper, evidenciando o interesse da autora por abordar temas polêmicos do momento.

Acusada de glamorizar o crime em "A Força do Querer", de 2017, por meio da personagem Bibi Perigosa, em um contexto de ascensão do bolsonarismo e de novelas bíblicas da concorrente TV Record, Gloria Perez foi acusada muito mais de apoiar uma política criminal punitivista após o assassinato da filha, elegendo como heróis de suas novelas homens e mulheres "da lei", como a delegada Helô e o soldado Théo em "Salve Jorge" e o assessor do secretário de Segurança Pública Caio e a policial militar Jeiza na já citada "A Força do Querer".

Não se pode ignorar o sucesso que séries e filmes sobre psicopatas e policiais fazem no mundo todo e a influência que podem ter sobre a novelista, mas o drama pessoal que viveu faz a adoção desses temas ganharem outra camada.

Por fim, é comum que Gloria Perez insira em suas tramas o ambiente da dança de salão e escale atores que eram amigos próximos de sua filha Daniella. Embora a própria Gloria seja entusiasta da dança e seja comum autores de novelas repetirem a escalação de seus atores preferidos, não deixa de ser uma forma que Gloria encontrou de transformar dor e saudade em arte, e manter Daniella, uma dançarina, um pouco presente em suas novelas e, portanto, viva.

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