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Atentado contra Salman Rushdie mostra o inferno onde nós cozinhamos

Fatwas, ameaças de morte e discursos de ódio contra minorias não são linguagem figurada, ao contrário, são bem literais

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J.P. Cuenca

Salman Rushdie ainda não havia dito nenhuma palavra. Aguardava ser apresentado pelo moderador, no que seria o início de um debate, quando foi apunhalado no pescoço por um homicida mascarado.

Segundo a descrição do evento, sediado num centro cultural no norte do estado americano de Nova York, o público deveria esperar "uma conversa sobre os Estados Unidos como asilo para escritores e outros artistas no exílio e como um lar para a liberdade de expressão criativa".

O novelista e ensaísta Salman Rushdie durante sessão de fotos em Paris
O romancista e ensaísta Salman Rushdie durante sessão de fotos em Paris - Joel Saget/AFP

No entanto, a audiência testemunhou outra coisa —uma brutal tentativa de assassinato que deixou o escritor esfaqueado numa poça de sangue no chão.

O fato de esse atentado ocorrer em 2022, mais de 30 anos depois da fatwa decretada pelo aiatolá Khomeini por apostasia, demonstra o quanto ainda precisamos lutar por princípios elementares de liberdade de expressão, laicidade do Estado —e contra o uso fanático da religião por autoritários com objetivos políticos e econômicos bastante concretos.

A obra de Rushdie, tal como o episódio da sua cabeça a prêmio por milhões de dólares, está situada na fantasmática cúspide do conflito entre valores tidos como ocidentais e suas contrapartidas do "outro" lado, entre o materialismo secular e a ânsia por transcendência. Sobre isso, muito já foi e será escrito. Sobre a condenação de livros e ideias, de Galileu a Sade, também.

Gostaria aqui de me ater ao ato de responder com violência física a algo dito ou escrito, um hábito talvez tão antigo quanto a própria invenção da linguagem.

Se pensarmos nesse "responder" em sentido amplo, podemos, grosso modo, dividir o discurso que leva à violência em dois tipos. O primeiro a convoca —por exemplo, via panfletos nazistas ou o texto contendo a fatwa contra Rushdie. O segundo a provoca, de acordo, claro, com os autores de textos do primeiro tipo.

Há apenas uma coisa em comum a esses discursos —são feitos de palavras. Se os textos cunhados pelo primeiro grupo de autores têm como objetivo primordial a eliminação física de seus inimigos, os outros normalmente se justificam com fins de literatura, crítica, jornalismo ou sátira.

Se você acha que os autores do segundo tipo têm algum tipo de culpa na perseguição que costumam sofrer dos primeiros, se você acha que há algo que possa justificar a conversão da língua à faca, é bastante provável que você seja do tipo que passa o cardápio quando um fascista senta à mesa.

A ideia de que qualquer sistema de crenças, científicas ou religiosas, esteja blindado ao contraditório e ao insulto e que conceitos como "blasfêmia" —modernamente traduzidos para "ofensa"— possam justificar tapas em humoristas, facadas em escritores e tiros de fuzil em cartunistas não pode ser normalizada, para usar termo da moda.

E perceba —não há "mas" nessa discussão. Quando você termina de usar qualquer adversativa para lidar com casos como esses, suas mãos já estão sujas de sangue. Alheio, claro.

Há dois anos, uma paráfrase satírica de um provérbio do Iluminismo francês me rendeu milhares de ameaças de morte e 144 processos em todo o país.

Não que eu seja autor popular entre tais hordas, elas chegaram a mim estimuladas por neofascistas como Eduardo Bolsonaro e Bia Kicis. Entre outros próceres da extrema direita brasileira, eles reproduziram meu tuíte seguindo a campanha difamatória e covarde que me acusou de "discurso de ódio", encampada pelos meus, na época, editores na Alemanha pressionados pelo governo brasileiro.

Ainda estou lidando com as consequências dessa blitzkrieg. Confesso que, de todo o absurdo da situação, o pior foi ter sido acusado de um crime que não cometi por atores políticos e religiosos que o cometem diariamente, instrumentalizando o ódio pela diferença em seus púlpitos e bancadas, com consequências diretas e fatais.

E esse é o ponto —fatwas, ameaças de morte e discursos de ódio contra minorias não são literatura, sátira ou crítica. Tampouco são linguagem figurada. São, ao contrário, bastante literais —incitação ao assassinato e a eliminação material do contraditório.

Na confusão de uma coisa com a outra, somos cozinhados no que Italo Calvino chamaria de "o inferno dos vivos". Tal inferno não é algo que será, mas sim "aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos".

Em 2022, há um ambiente irrespirável de intolerância e violência, um vácuo de ideias reforçado por dogmas baratos, certezas morais e cancelamentos policialescos de parte a parte.

Ao recusar falsas escolhas entre justiça e liberdade, como diria Rushdie, nos resta abrir espaço no meio desse inferno, preservando o livre intercâmbio de ideias, defendendo uma arte que possa experimentar e assumir riscos, nos opondo à cultura da morte e ao fascismo.

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