O escritor João Paulo Cuenca diz que o fato de ter passado “a infância inteira defendendo o Maradona” fez dele alguém mais preparado para travar brigas na vida adulta.
“As maluquices, o futebol e a identidade do Maradona foram importantes na construção da minha personalidade”, afirma ele, que assina como J.P. Cuenca, tem 42 anos, é flamenguista e ficou “consternadíssimo” com a morte do ídolo.
“Eu torcia para a Argentina. Era dureza crescer assim no Brasil nos anos 1980 e com o Galvão [Bueno] falando aquelas coisas [de rivalidade entre os dois países]”, brinca o autor nascido no Rio e filho de um publicitário argentino com uma bancária brasileira. “Tem que ser resiliente.”
Essa perseverança foi colocada à prova recentemente. Pastores evangélicos de cidades em 21 estados brasileiros estão processando Cuenca. Eles se dizem ofendidos por uma postagem que o escritor fez em uma rede social em junho. A defesa do autor já contabiliza 134 ações judiciais que somam quase R$ 2,3 milhões em pedidos de indenizações.
“O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”, dizia o texto publicado pelo carioca. A mensagem foi baseada na frase de Jean Meslier, autor do século 18, cuja versão original afirma que “o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”.
A Justiça do Rio acatou pedido feito por um desses líderes religiosos e determinou que a conta de Cuenca no Twitter seja excluída. Cabe recurso.
“Das centenas de milhares de pessoas que já fizeram uma paráfrase do Meslier nos últimos 300 anos, não sei de ninguém que sofreu tantos processos e que perdeu o emprego”, afirma o escritor de sua casa, em São Paulo, em entrevista feita por vídeo na segunda-feira (30).
Cuenca postou o tuíte em um momento “entediado na quarentena”. “Vi uma notícia sobre verbas do governo indo para emissoras de TV e de rádio de propriedade de pastores da Universal e de outras. Me veio de supetão a frase do Meslier”, conta. Ele não imaginou que a paráfrase fosse gerar polêmica. “Talvez tenha sido ingenuidade minha.”
Dois dias depois do post, o autor foi demitido da Deutsche Welle (DW) no Brasil, veículo público alemão de comunicação no qual ele era colunista desde 2019. A empresa emitiu nota alegando que a mensagem publicada pelo escritor contraria os seus valores.
“Considero isso o primeiro absurdo, o fato de essa campanha difamatória ter acontecido e a DW ter subscrito”, diz Cuenca. “Dizer que eu estou clamando pelo enforcamento dos Bolsonaros, a sátira não tem esse sentido. Não estou clamando pelo enforcamento de ninguém. Só acho que esses indivíduos têm que estar longe do Estado, de Brasília”.
Para ele, o tuíte ganhou grande repercussão por causa do comunicado do seu desligamento. “Eles [DW] cederam à pressão, compraram uma calúnia e isso fez a coisa sair do controle”, afirma. A nota oficial da empresa foi compartilhada pelo deputado Eduardo Bolsonaro. “Cuenca desrespeita o presidente Jair Bolsonaro e é demitido. Há esperança de um trabalho ético em determinados segmentos da imprensa”, escreveu o parlamentar.
“A partir dali o assunto entra nas redes da extrema-direita e eu começo a receber ameaças de morte e de processos”, diz o escritor. “Sendo que dois dias depois do post a repercussão já estava diminuindo. A manada ataca e depois se distrai.”
Cuenca diz ter “ouvido de três fontes” que “sua cabeça foi pedida por pressão do governo brasileiro sobre o alemão”. Ele estuda processar a empresa. “Não fui inflexível. Ofereci escrever uma coluna imediatamente. Seria um jeito de aprofundar a discussão.”
À coluna, o porta-voz da DW, Christoph Jumpelt, afirma que “a alegação de que o veículo reagiu a qualquer tipo de pressão política é absurda” e que os seus contratados devem obedecer a um código de conduta. “Por mais contundente que seja um comentário, ele não deve usar linguagem desumana.”
“O direito à liberdade de expressão carrega a responsabilidade pelo que está sendo dito. Fantasiar que um oponente político deveria ser morto, enquanto ao mesmo tempo assassina um grupo de outros oponentes, cruza a linha da responsabilidade. Em um ambiente político acalorado como o brasileiro, publicar algo assim significa manusear explosivos”, encerra Jumpelt.
Cuenca explica que a sua paráfrase quer dizer que “a República tem que ser soberana e livre da influência de grupos religiosos e de famílias milicianas”. “O que está acontecendo é prova de que tenho razão.”
“Quando penso no tamanho dessa repercussão, vem um gatilho que sinaliza o quão irreal é isso. É absurdo que eu esteja sendo perseguido pelo uso de linguagem figurada em 2020.”
“Os pastores evangélicos sabem o que é metáfora”, diz o escritor. “Eles usam o Evangelho diariamente para seduzir os seus rebanhos. São leitores do livro que tem mais linguagem figurada da história da humanidade: a Bíblia. Até os beócios dos bolsonaristas sabem.”
Para Cuenca, a situação fica mais inacreditável “quando você pensa que o presidente do Brasil se elegeu com um discurso francamente de ódio. Dizendo que ia fuzilar a petralhada e mandar a oposição para a ponta da praia, um lugar de execução na ditadura. Esses caras estão me acusando de ódio por causa de uma metáfora.”
“Pensa na Igreja Universal do Reino de Deus, que é uma congregação, um partido político, uma multinacional que há décadas se dedica a difundir discurso de ódio contra religiões de matriz africana. Eles fazem isso usando concessões públicas de televisão.”
Cuenca chama a enxurrada de processos pulverizados em pequenas comarcas do Brasil de “assédio judicial”. “O objetivo deles não é ganhar. É constranger a pessoa, inviabiliza-la e colocá-la como exemplo. O mais grave é que se o sistema jurídico normaliza isso, cria um estado permanente de medo e de censura”, argumenta.
A Folha mostrou que em dezenas das ações contra Cuenca há trechos idênticos e que mostram o uso de modelos de redação, o que pode indicar ação orquestrada. A Igreja Universal nega uma coordenação de processos, afirma que não moveu “qualquer ação contra o escritor” e que esses processos são iniciativas individuais de pastores “que têm autonomia para tomar as próprias decisões”.
“Como vítima maior do preconceito religioso no Brasil, a Universal defende as liberdades constitucionais. Contudo, a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Em nosso país, não existe permissão para que uma ‘paráfrase’ promova ideias desprezíveis como, por exemplo, o nazismo, o racismo ou o preconceito de qualquer tipo”, diz a congregação.
A contenda de Cuenca foi noticiada no The New York Times. “O repórter perguntou: ‘Você se arrependeu do tuíte?’ Não sei, porque isso pode servir para criar uma jurisprudência que impeça que esse tipo de caso se repita .Essa é a única coisa que me deixa otimista.”
“A minha paráfrase não é contra os cristãos ou os evangélicos. Não sou contra a religião. É uma frase contra essa congregação e o poder político que ela tem”, ressalva Cuenca, que considera a derrota de Marcelo Crivella nas eleições municipais do Rio “a coisa mais importante que aconteceu na política brasileira desde 2018.”
“Isso mostra que esse projeto de poder, essa união entre milícia carioca e Igreja Universal do Reino de Deus, não vai prosperar politicamente.” Crivella é sobrinho do bispo Edir Macedo, líder da Universal.
Cuenca define a situação em que se encontra como “uma censura gasosa”. “Você não precisa assinar um AI-5 [para cercear liberdades]. Usar uma lacuna do sistema jurídico para deixar uma pessoa maluca ou levá-la à falência é censurante”.
“Gostaria muito de dialogar com esses pastores [que o processam]. Devemos ter muitas coisas em comum. Não tenho raiva deles nem quero que eles deixem de existir”, diz o escritor, que deve usar o episódio em um filme. “Quando tudo passar, e espero que em algum momento isso aconteça, vai ser uma história interessante pra contar. Mas ainda não consigo achar muita graça, não.”
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