Descrição de chapéu Financial Times Livros

Atentado a Salman Rushdie mostra que liberais precisam superar aversão ao conflito

Ênfase excessivo à razão atrai apenas pessoas que não sabem reconhecer quais batalhas devem ser travadas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Janan Ganesh
Financial Times

George Orwell certa vez cortou uma vespa viva ao meio na mesa do café da manhã e ficou vendo um "rio de geleia" vazar do traseiro dela. Outro desejo que ele sentia de quando em quando era o de "enfiar uma baioneta nas entranhas de um sacerdote budista". Um colega com quem ele dividiu um apartamento recordou a "exaltação sádica" com a qual Orwell ficou violento uma noite.

Aqui eu deveria fazer alguma observação sobre o caráter torto da humanidade. "Vejam, mesmo esse flagelo dos fascistas e comunistas era um homem que tinha defeitos."

O escritor anglo-indiano Salman Rushdie - Joel Saget/AFP

Mas e se o vício particular possibilitou a grandeza pública em lugar de contrastar com ela? E se o traço de perversidade que Orwell possuía lhe permitiu reconhecer a perversidade real de Hitler e Stálin, enquanto liberais gentis da estirpe de H.G. Wells não a enxergaram?

Esse pode ter sido o segredo de Churchill, também. Ele pôde enxergar o nazismo como sendo o que foi precisamente porque a hierarquia e a conquista não deixavam de ter certos atrativos para ele.

A esquerda "woke" constitui uma ameaça ao liberalismo. A direita pós-verdade também. Mas cada uma delas já é bem compreendida. O que não é entendido tão bem é até que ponto os próprios liberais são um problema. Pelo fato de o credo deles dar tanta ênfase à razão, ele atrai pessoas que são inúteis para lidar com o conflito. Não conseguem reconhecer a frequente necessidade dele, tampouco sabem como o travar.

O atentado recente à vida de Salman Rushdie nos recorda quem evitou dar nomes aos bois durante os anos que o escritor passou na clandestinidade, fugindo da violência clerical. A democrata liberal britânica Shirley Williams e conservadores britânicos tão civilizados quanto Douglas Hurd e John le Carré, em sua manifestação pior de relativização —não foi, ou não foi apenas, uma galeria de esquerdistas e reacionários religiosos.

Um clipe antigo de Shirley Williams mostra uma pessoa que está praticamente sentindo dor física por ser obrigada a defender publicamente suas convicções sobre liberdade de expressão. No final, ela não o faz.

A invasão da Ucrânia tomou o lugar do caso Rushdie (e ele próprio tomara o lugar da Guerra Civil Espanhola) como a prova dos nove instantânea de alguém, a maneira mais rápida de situar a pessoa. E novamente as conclusões são bizarras. O governo britânico populista, até selvagem, vem sendo um aliado mais firme da Ucrânia que a Alemanha, sob alguns aspectos a nação exemplar do Ocidente liberal.

O sentimento de culpa histórico em relação à Rússia explica em parte a hesitação de Berlim. Mas esta também é explicada pelo mal-estar que um establishment político profundamente consensual sente com o conflito e com opções inequívocas.

A veia demagógica dos modernos e dos republicanos americanos os deveria tornar alvos fáceis do Kremlin. Mas descobrimos que ela também confere outras coisas —um gosto pelo conflito, um conhecimento inato da psique dos ditadores.

Não precisamos olhar para o quadro geopolítico maior para enxergar o amor dos liberais pela vida tranquila. Ele está presente na observação feita tão frequentemente em jantares de que sim, Richard Dawkins "tem razão", mas será que precisa ser tão desagradável quando o afirma? Ou a verdade está acima de tudo, e nesse caso questões de tom não vêm ao caso, ou ela perde em importância para a coesão social, caso no qual os biólogos acadêmicos precisam pisar sobre ovos na presença dos crédulos.

Ele (o amor dos liberais pela ausência de conflito) está presente também na crescente negação de que alguma coisa deu muito errado com a política de identidade. Quando um liberal fala "não há guerra cultural", o que eu ouço é "que não haja guerra cultural, por favor, senão eu terei que me desentender com meus amigos, enfrentar meus filhos, chatear meus funcionários; ou, ainda pior, ir na onda deles e me sentir um covarde".

Mesmo que seja verdade que 2020 acabará se revelando o ano em que a mentalidade "woke" alcançou seu auge, terá sido porque pessoas –escritores, humoristas— tomaram posição. Quem se omitiu na época não tem o direito de se adiantar agora e dizer que a discussão toda foi exagerada, virou uma tempestade em copo d’água. O poeta Robert Frost certa vez definiu um liberal como alguém que não toma seu próprio partido numa briga. Está cada vez mais difícil reconhecer a briga.

Outra defesa liberal é dizer que a cultura do cancelamento desvia nossa atenção da crise econômica. E talvez seja fato. Mas o tormento de um escritor foi algo que desviou nossa atenção no ano de 1989, que não foi exatamente tranquilo. Sempre haverá uma razão para contornar um tópico. No final, deixando de lado sua "saliência", o que você acha dele?

Não há nada de inato no liberalismo que imponha a possibilidade de evasão. Pessoas nos países bálticos, na Polônia e nos Estados Unidos que se identificam como liberais já o comprovaram, ajudando a Ucrânia. Mesmo assim, o fenômeno que Orwell encarnou reaparece em diferentes eras e contextos.

É revelador quantos dos defensores mais firmes de Rushdie –Susan Sontag, Christopher Hitchens— foram radicais. Conhecendo o temperamento extremista de dentro para fora, eles não nutriam ilusões a seu respeito. Tampouco tinham prática em ficar educadamente calados. Pelo menos às vezes é preciso um bruto para agarrar um bruto.

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.