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Jô Soares ridicularizava o Brasil real com Capitão Gay, General e Reizinho

Seus personagens de humor, cheios de bordões, eram um espelho torto da sociedade e desafiavam o moralismo vigente

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Enquanto se discute atualmente por que a Globo optou pelo silêncio no humor político para se resguardar por trás da comédia pastelão de "Vai que Cola" e companhia, a partida de Jô Soares, morto aos 84 anos, nesta sexta-feira, remete à certeza de que esta mesma TV já soube dividir a bola entre todas as vertentes temáticas com maior competência.

Em tempos bem mais sombrios que hoje, Jô Soares —assim como Chico Anysio, morto há dez anos—, conseguiam incomodar, num mesmo programa, as barbas do poder público e o moralismo vigente na crônica de costumes.

Jô Soares como o Capitão Gay
Jô Soares como o Capitão Gay - Divulgação

O Capitão Gay, que, a seu modo caricatural de espelho torto, ridicularizava a homofobia daqueles dias, convivia lado a lado com figuras como o Reizinho, monarca diminuto que exibia ego gigantesco e punha o humorista de joelhos em cena, desfilando problemas muito semelhantes aos do Brasil real.

Havia o Gandola, alusão à influência dos militares na ditadura, sempre mencionado por alguém em busca de uma colocação em qualquer posto de emprego –"quem me mandou aqui foi o Gandola", dizia. E também o Zé da Galera, torcedor fanático da seleção brasileira que ligava de um orelhão para o técnico Telê Santana para dar pitaco na escalação do time –"bota ponta, Telê".

Em 1986, o General, amigo do ex-presidente João Figueiredo, que sofrera um acidente no dia de sua posse e passara seis anos em coma, despertava ainda frágil e ligado a tubos e sondas, quando descobria que o Brasil havia mudado e que o comando estava de novo sob as ordens de um civil, José Sarney. Ao ser informado sobre as mudanças em curso no país, clamava "me tira o tubo", a fim de morrer logo.

A maestria em escrever e atuar na criação de tipos diversos chegara à Globo em 1971, com "Faça Humor, Não Faça Guerra", mas já vinha calcada no êxito da maior referência nacional de comédia de situação que se tem por aqui, a "Família Trapo", cujo texto ele dividia com Carlos Alberto de Nóbrega na TV Record dos áureos anos 1960 –um escrevia da página um à 25 e o outro, da 26 à 46, lembra o diretor Nilton Travesso, que integrava o time da emissora na gestão de Paulo Machado de Carvalho.

Juntavam as duas partes, sem arestas a aparar, dando ainda margem à livre improvisação de Ronald Golias.

Dos tipos desfilados na Globo entre os anos 1970 e 1980, havia ainda o Irmão Carmelo, sempre cioso do "casa-separa" dos casais, e também o locutor que tagarelava notícias de economia ao lado de Paulo Silvino, parceiro de vários quadros e tantos bordões.

Entre a Bô Francineide, atriz de pornochanchada que buscava emprego na TV ao lado da mãe, vivida por Henriqueta Brieba, e o Sebá, exilado na ditadura que resistia em voltar ao Brasil –"Madalena, você não quer que eu volte!"–, havia também muito do humor sexista que encontrava graça no público da época, um sinal de outros tempos.

Mas Jô se desconectaria daquelas piadas bem antes que os executivos de TV e outros comediantes percebessem seu teor perecível.

Foi assim que, ainda na pré-história do streaming e da TV paga, resolveu abrir mão de seu lugar de conforto na TV Globo, tela absolutamente hegemônica naquele final de anos 1980, para encontrar a chance de se reinventar na chamada "campeã absoluta da vice-liderança", como anunciava o slogan do SBT à época.

Bem que ele tentou criar um talk show à moda Johnny Carson na própria Globo, mas José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, então chefão da emissora, se recusou a abrir espaço para ele na grade de programação, que tinha uma rigidez implacável naqueles dias em que a emissora liderava a audiência com larga vantagem.

Além disso, Boni não queria mexer em time que estava ganhando, e Jô trazia bons resultados com o papel que já desempenhava nos programas de humor exibidos em edições semanais ao longo do ano todo.

Em 1988, depois de mais de 30 anos de TV, com todos os créditos em alta, ele se propôs a recomeçar do zero um novo expediente, entrevistando famosos, e até alguns anônimos, de segunda a sexta-feira, no fim de noite.

Viveu e alimentou a fase mais gloriosa da rede de Silvio Santos, mas não antes de comprar um rompimento vexatório para a história da Globo.

Ao tomar conhecimento da saída de Jô, Boni chegou a tentar proibir que o apresentador usasse até a palavra "gordo" em qualquer programa ou espetáculo seu. Na ocasião, o humorista escreveu um artigo para o extinto Jornal do Brasil, lido em rede nacional durante a entrega do Troféu Imprensa daquele ano de 1988, rechaçando as tentativas de represália feitas pelo ex-chefe, que chegou a vetar filmes publicitários não só com Jô, mas com quem mais tivesse trocado de canal com ele, como os atores Eliezer Motta e Nina de Pádua.

Em seu artigo, Jô fez um paralelo entre a atitude de Boni e a lista negra, como era chamada a relação de nomes de quem fosse persona non grata na indústria de Hollywood em 1947, composta por profissionais acusados de simpatizarem com o comunismo.

"A TV Globo escolheu exatamente o momento da Constituinte no Brasil para inaugurar sua lista negra. Quem sair da emissora sem ter sido mandado embora, corre o risco de não poder mais trabalhar em comerciais, sob a ameaça de que esses não mais serão lá veiculados. Como a rede detém quase que o monopólio do mercado, os anunciantes não ousam nem pensar em artistas que possam desagradar a ela", disse na ocasião.

"É triste, neste momento em que se escreve diariamente a democracia no Congresso, uma empresa que é concessão do Estado cerceie impunemente o trabalho do artista brasileiro, de um modo geral já tão mal remunerado", completou Jô, finalizando que "Silvio Santos foi tremendamente injusto quando chamou Boni de office-boy de luxo; nenhum office-boy consegue guardar tanto rancor no coração".

Depois de algum tempo, Boni desistiu de brigar. Jô venceu na nova empreitada, e a Globo se rendeu ao programa com 12 anos de atraso. O próprio Boni se sentaria na poltrona de Jô na Globo, bem depois, quando os dois falariam sobre o caso como águas passadas. E o ex-chefe reconheceria seus excessos no seu livro de memórias.

Do Jô Onze e Meia ao Programa do Jô, o talk show foi a maior vitrine para lançamentos de livros, músicas, peças e talentos que a TV experimentou nesses quase 30 anos, sem falar no peso do programa durante o pré-impeachment de Fernando Collor em 1992, quando Silvio Santos ainda permitia que seus talentos emitissem opinião no ar.

O sofá de Jô foi o ponto de maior referência do país para quem queria ser notado nesse período. Em 2016, a direção da Globo encerrou o programa à revelia do apresentador, que almejava fechar 30 anos de talk show, a contar do seu início, no SBT, com os mesmos músicos de seu quinteto —que por algum tempo foi sexteto.

Dois anos antes de sair de cena, Jô perdera seu maior parceiro de criação, Max Nunes, um gênio que o acompanhava na redação de textos desde os programas de humor. Outro fator que arrefecera seu ânimo em 2014 foi a perda do filho, Rafael, aos 50 anos.

Mas a saída do ar àquela altura fora determinada pelos novos rumos da Globo, que via em Jô alguém com autonomia demais para as novas políticas da casa. Diferentemente de outros profissionais da emissora, ele tinha liberdade para não submeter a pauta do programa à cúpula, prerrogativa de que desfrutava desde a sua volta ao canal, em 2000, quando deixou o SBT.

A Globo ainda o manteve sob contrato ao longo de um ano para frear uma possível ida para a concorrência. Houve quem chegasse a cogitar seu aproveitamento em outros canais do grupo, mas ele mesmo não se mostrou interessado em fazer nada que não estivesse ao nível de seu histórico.

A saúde, já frágil, também conspirou para a adoção de um ritmo menos intenso, com atenções voltadas ao teatro e aos livros, incluindo os dois volumes de suas memórias.

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