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Jô Soares nasceu rico num berço de ouro, mas jamais foi um esnobe

Morto nesta sexta aos 84 anos, humorista era intelectual que discutia assuntos densos de maneira acessível

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Jô Soares, morto aos 84 anos, nesta sexta-feira, era um corpo estranho no humor nacional. Não só por causa do formato rotundo, que se destacava em meio aos magriços Oscarito, Chico Anysio e Renato Corte Real, mas pela origem social.

Jô Soares no livro 'Ela É Carioca', de Ruy Castro - Companhia das Letras/Divulgação

Ao contrário da maioria de seus colegas, Jô Soares não veio de baixo. Nasceu em berço esplêndido, no Rio de Janeiro, em 1938. Sua árvore genealógica incluía nomes como Filipe José Pereira Leal, governador do Espírito Santo na época do Império, seu bisavô pelo lado materno, e Francisco Camilo de Holanda, ex-governador da Paraíba, seu tio-bisavô pelo lado paterno.

Apesar de sua família já não ser tão rica quanto um dia fora, ainda havia o suficiente para garantir uma educação primorosa para o jovem José Eugênio. Ele estudou nos melhores colégios frequentados pelos rebentos da elite carioca, como o São Bento, no Rio, ou o São José, em Petrópolis, na região serrana fluminense. Ainda passou uma temporada no Lycée Jacquard, em Lausanne, na Suíça.

Falava seis línguas com fluência, e a família achava que esse talento para os idiomas seria fundamental para uma bem-sucedida carreira na diplomacia. Jô até pensou em cursar o Instituto Rio Branco, mas a paixão pela carreira artística falou mais alto.

Em 1956, com só 18 anos de idade, já estreava na televisão, no humorístico "Praça da Alegria", na TV Record —o programa sobrevive até hoje como "A Praça É Nossa", no SBT.

Seu primeiro personagem icônico surgiu em 1967, o mordomo Gordon, na sitcom "Família Trapo", um enorme sucesso de audiência das noites de domingo da Record. Gordon era um protótipo para as centenas de outros tipos que Jô criaria ao longo das décadas seguintes, combinando apelo popular e verniz sofisticado, um empregado doméstico mais culto que seus patrões , capaz de propor propor saídas inteligentes para qualquer enrascada.

O humor refinado de Jô Soares se consolidou com os humorísticos que ele comandou na TV Globo durante as décadas de 1970 e 1980. Apesar dos nomes diferentes, "Faça Humor, Não Faça a Guerra", "Satyricom", "Planeta dos Homens" e "Viva o Gordo" tinham formatos semelhantes –eram coleções de esquetes estrelados por basicamente o mesmo elenco.

Foi lá que Jô Soares lançou personagens como a cantora Norminha, a atriz pornô Bô Francineide, o Capitão Gay e o homem que tinha um filho escancaradamente gay, mas usava o bordão "tem pai que é cego" quando cruzava com alguém em situação parecida.

Alguns desses tipos talvez fossem cancelados nos dias de hoje, mas na época eram bastante progressistas. Jô conseguia tirar sarro de mulheres alopradas e bichas espalhafatosas sem resvalar na vulgaridade. Coisa de gente fina.

A partir da mudança para o SBT, em 1988, Jô Soares conseguiu dar vazão no ar à sua verve mais intelectual. O talk show Jô Soares Onze e Meia virou a grande sala de visitas da TV brasileira, desbancando até mesmo o lendário sofá de Hebe Camargo —e sem mágoas de parte a parte, os dois foram grandes amigos a vida inteira.

Jô recebia convidados como o diretor Roman Polanski e conversava com ele em francês, com legendas. Não soava esnobe. Muito pelo contrário. A pegada do apresentador era sempre inclusiva. Jô não pavoneava seus conhecimentos, mas os usava como uma rampa para o público em geral ter acesso às celebridades internacionais que iam ao seu programa.

Jô Soares Onze e Meia, que invariavelmente começava mais tarde que o horário anunciado em seu título, nunca foi um campeão no Ibope, mas servia para atrair anunciantes de peso e dar uma aura de elegância ao SBT. No entanto, Jô se sentia meio sozinho na emissora de Silvio Santos, sem muita interlocução com ninguém. Em 2000, voltou para a TV Globo, onde permaneceu até 2016.

Nesse meio tempo, escreveu romances históricos, dois volumes de uma autobiografia e inúmeras crônicas para jornais. Dirigiu Shakespeare e diversos outros autores no teatro e gostava de trazer seus numerosos elencos para ensaiar no apartamento duplex em que vivia no bairro paulistano de Higienópolis.

Em seus shows solo, não faltavam piadas escatológicas. Quem viu, jamais se esquecerá do monólogo sobre os nomes do pênis em diversas línguas. Aliás, eis aí um bom resumo de seu estilo. Quem mais conseguiria reunir termos chulos como "burundanga" e "poronga" num mesmo texto, sem escandalizar os mais pudicos?

Jô Soares foi um homem de uma curiosidade intelectual infinita, que revertia em diversão e cultura para um público amplo. O Brasil perde uma figura única, imensa em todos os sentidos.

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