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'Baldomero', de Leandro Rafael Perez, não é para aqueles cheios de pudor

Estreia do autor na prosa depois da poesia é centrada em experiência homossexual com exagero na linguagem crua

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Ligia Gonçalves Diniz

Professora de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais

Baldomero (ou babá, para os íntimos, inexistentes)

  • Preço R$ 54,90 (80 págs.); R$ 32,90 (ebook)
  • Autoria Leandro Rafael Perez
  • Editora Fósforo

Quem passa os olhos pela capa de Baldomero, com esse título esquisito e a ilustração meio jocosa, não imagina o que há por trás dela. Mas, se o leitor passa os olhos pelo subtítulo – "Ou Babá, para os Íntimos, Inexistentes" –, a coisa muda de figura.

Ali estão, ainda discretos, os elementos que articulam a breve novela de Leandro Rafael Perez —o estranhamento do coloquial, o lugar-comum deslocado do óbvio e, finalmente, o lirismo que vem sacudir a leitura, reconfigurando a experiência cotidiana. Não à toa, a estreia na narrativa de ficção chega depois de Perez se exercitar em três volumes de poemas.

Vale apostar nisso para atravessar a primeira página que, ao deixar claro que se trata de uma narrativa centrada na experiência homossexual, exagera na crueza da linguagem. Ao virarmos a folha, a proposta se torna mais interessante. Após uma lembrança marcante de sexo oral e, em seguida, da vergonha da pele oleosa de quando adolescente, o narrador, acessando a consciência do protagonista Baldomero, se interrompe —"a faculdade de pensar, quem sabe, é mera resposta humana à insolência das memórias".

Capa do livro 'Baldomero (ou babá, para os íntimos, inexistentes)
Detalhe da capa do livro 'Baldomero (Ou Babá, para os Íntimos, Inexistentes)' - Reprodução

A alternância entre os tons marca de modo surpreendentemente bem-resolvido a narrativa de algumas breves semanas na vida de Baldomero —que "só queria se chamar Valdomiro". A brincadeira tem fundo grave —nada é fácil da vida deste jovem gay, desde o nome até a difícil circulação pelas regiões de uma Grande São Paulo que acolhe, mas confunde.

Há assassinato por vingança, há suicídio por cansaço, mas o fio que organiza "Baldomero" é a contraposição entre o desejo de intimidade e os encontros que preenchem os dias e que são marcados apenas pela superficialidade das relações.

Distante da mãe e da irmã, marcado pelo abuso sexual cometido por um tio, dividindo apartamento com uma colega (amiga seria uma palavra forte demais), alienado do melhor amigo de faculdade, a qual ele precisou abandonar, parecem restar ao protagonista as relações em motéis.

"Faltavam à Baldomero a voz e a permanência alheia", resume o narrador, entre descrições bem imagéticas dos encontros. Estas, longe de serem gratuitas, dão cor à solidão do personagem, ao mesmo tempo que apresentam as dinâmicas homoeróticas ao leitor alheio a esse universo.

Ambos os efeitos são necessários para que percebamos que aquilo que está em jogo é algo mais denso. É tentador repetir a frase de Valéry, já um clichê —"o mais profundo é a pele". As cenas sexuais são tanto objetivas quanto metafóricas. Por vezes brutais, deixam claro que a tensão entre amor, solidão, medo e violência não é exclusividade de nenhum gênero ou orientação sexual.

Ainda assim, e esse é o encanto do personagem, o que emerge da leitura não é a amargura, e sim uma melancólica esperança. "Toda mudança soa boa na desgraça, quase um amor", lemos em uma passagem na qual ele recebe "um convite para foder".

"Baldomero" não é, possivelmente, a narrativa adequada para olhos cheios de pudor que se melindrem diante de cenas que às vezes saltam o erótico para tocar diretamente a pornográfico.

Talvez não seja a escolha de presente mais apropriada para aquele tio bolsonarista –ou talvez seja exatamente o melhor presente, já que, lendo as desventuras cheias de espanto e solidão, mas também de violência, virilidade e narcisismo do personagem, seu tio será obrigado a se reconhecer. Isso é mérito do uso consciente da dicção poética como a única que dá conta de comunicar aquilo que escapa ao lógico e ao factual.

Não é sempre que a experimentação formal funciona, porém. As referências paulistas entrecortadas parecem querer conferir ritmo, mas muitas vezes são obscuras e truncadas, sobretudo ao leitor de outra cidade.

Em outro sentido, os dois capítulos finais, embora muito bem compostos em si mesmos, dão ao livro um final um pouco apressado. Nada que comprometa gravemente o conjunto, porém. Como escreve Bernardo Carvalho na orelha do livro, estamos diante "mais de tentativa que de acabamento", o que pode se referir a "Baldomero", o livro, mas também a Baldomero, o personagem, e, claro, a cada um de nós. E essa é a graça da coisa.

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