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'A Bastarda' usa mistura no discurso para conferir voz singular à solidão

Violette Leduc destrincha em livro a condição feminina a partir de sua turbulenta história amorosa com Simone de Beauvoir

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Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

Que marca pode uma mãe deixar na personalidade e no destino de uma filha fica dolorosamente exemplificado nesta autobiografia de Violette Leduc (1907-1972). Em "A Bastarda" (título já tão sugestivo), encontra-se nua e crua a história da vida afetiva conturbada desta escritora francesa.

O livro, lançado em 1964, muito favorecido pelo prefácio de Simone de Beauvoir e alavancado pelo movimento feminista, não deixa de ser um relato das "fatalidades" e "infelicidades da condição feminina" de sua época, como diz Beauvoir.

A novelista francesa Violette Leduc, autora de 'A Bastarda', em sua casa, em 1964
A escritora francesa Violette Leduc, autora de 'A Bastarda', em sua casa, em 1964 - AFP

Para além do desprezo e do assédio materno de que Leduc foi vítima, descritos aqui sem dó, ela expõe detalhes de sua vida amorosa, seus relacionamentos com mulheres, suas paixões por homens homossexuais, bem como sua batalha pessoal por se tornar uma escritora reconhecida e para superar um complexo de feiura física e insegurança quanto à sua sexualidade.

Capa do livro 'A Bastarda', de Violette Leduc
Capa do livro 'A Bastarda', de Violette Leduc - Divulgação

Beauvoir foi a grande incentivadora da carreira de Leduc. Sobre "A Bastarda", a filósofa comenta: "Desde as primeiras páginas, a autora nos subjuga com o peso das fatalidades que a moldaram. Durante toda a sua infância, sua mãe incutiu nela um sentimento irremediável de culpa: culpada por ter nascido, por ter uma saúde frágil, por custar dinheiro, por ser mulher e destinada às infelicidades da condição feminina".

Em 1945, depois de ler e se sentir bastante tocada por "A Convidada" (1943) –romance de Simone de Beauvoir inspirado num triângulo amoroso entre ela, Jean-Paul Sartre e a atriz francesa Olga Kosakiewicz–, Violette Leduc quis conhecer a filósofa, a quem apresentou o manuscrito de "L’Asphyxie" (a asfixia, seu primeiro romance, nunca publicado no Brasil).

Introduzida no círculo intelectual de Sartre e Beauvoir, Leduc logo teve seu livro publicado (por Albert Camus) e seu surgimento literário comemorado por nomes importantes da cultura parisiense de então. Desenvolveu uma espécie de obsessão por Beauvoir, a qual sempre apoiou mas também restringiu os avanços invasivos de Leduc. A história da amizade entre elas é contada no filme de Martin Provost, "Violette" (2014).

Leduc nasceu no norte da França e viveu parte da juventude naquela região, em Valenciennes, onde, no internato em que estudou no início dos anos 1920, teve intensos relacionamentos afetivos com mulheres. Por descrever abertamente essas experiências sexuais em seus romances, enfrentou repressão e censura.

A editora Gallimard, que publicou seu romance "Ravages" (1955), cortou todo o capítulo inicial, que descrevia os encontros sexuais de Leduc com Isabelle, sua colega e amante de internato. Dez anos depois, a parte censurada foi publicada separadamente como a novela "Thérèse et Isabelle".

Em 1926, aos 19 anos, Leduc mudou-se para Paris com a mãe e o padrasto. Ali trabalhou como editora e jornalista. Envolveu-se em três relacionamentos turbulentos com homens homossexuais, casou-se com um deles, Gabriel Mercier, um velho amigo, de quem engravidou, mas abortou, tendo o casamento durado pouco.

Apaixonou-se pelo controverso escritor francês Maurice Sachs, também homossexual e judeu, acusado, durante a Segunda Guerra, de ter espionado para os nazistas alemães. Seu caso de amor com Sachs é descrito em detalhes neste "A Bastarda".

Mas esta autobiografia não é um simples relato documental dos fatos de uma vida. É texto de uma escritora, com toda a técnica narrativa que o torna único. Leduc alterna discursos (do fluxo de consciência ao direto e indireto) e dá voz às pessoas que retrata. Mescla suas recordações com a contextualização do momento em que as escreve.

À parte isso, o livro fornece farto material para abordagens psicanalíticas, não apenas por mostrar a fundo a neurose de uma relação mãe-filha, como também por ser revelador dos prováveis disparadores da instabilidade psíquica que acometeu a escritora ao longa de sua vida. "Alguém que nos fale do fundo de sua solidão fala de nós mesmos", conclui Beauvoir sobre a escrita pungente de Leduc.

A Bastarda

  • Preço R$ 88 (528 págs.)
  • Autoria Violette Leduc
  • Editora Bazar do Tempo
  • Tradutora Marília Garcia
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