Descrição de chapéu Cinema

Como Jean-Luc Godard influenciou a contracultura brasileira e o tropicalismo

Caetano Veloso diz que sem o diretor não veria o que viu em 'Terra em Transe', de Glauber Rocha, sua grande influencia

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São Paulo

Três vertentes da vanguarda brasileira dos anos 1960 dialogaram com o imaginário e o pensamento estético de Jean-Luc Godard, morto nesta terça-feira (13) aos 91 anos. No cinema novo e nos princípios do tropicalismo e do cinema marginal, Godard pairava como uma bússola da modernização e um mestre contemporâneo a ser discutido.

Jean-Luc Godard e Glauber Rocha na filmagem de 'Vento do Leste', em Roma, em 1969
Jean-Luc Godard e Glauber Rocha na filmagem de 'Vento do Leste', em Roma, em 1969 - Reprodução

"O que se chamou tropicalismo não existiria se Duda Machado não me tivesse dito que ‘Acossado’ era melhor e mais importante do que ‘Hiroshima, Meu Amor’", lembra Caetano Veloso em entrevista à Folha. "Fui ver o filme de Godard e ali, na Bahia, no largo 2 de Julho [data da verdadeira independência do Brasil], percebi a perspectiva pop. Só vim a ver Warhol, Lichtenstein et cetera na Bienal de São Paulo, já com ‘Alegria, Alegria’ e ‘Tropicália’ compostas. Anos depois, quando vi, em Paris, ‘A Lei do Desejo’, antecipei a observação da crítica Pauline Kael —‘Almodóvar é Godard com uma nova cara, feliz’."

"Projetei ‘Uma Mulher É Uma Mulher’ na sala da minha casa para Pedro e ele não acreditou que a Kael tivesse escrito o que eu contava. Briguei, aos berros, com o presidente da República, com o rei Roberto e com o ministro Celso Furtado pela nojenta censura ao ‘Ave Maria’ godardiano e fui apoiado por Fernanda Montenegro. Sempre creditei a ‘Terra em Transe’ a inspiração tropicalista. Mas eu não veria no filme de Glauber o que vi se Godard não me tivesse munido das sua lentes." Interlocutor de Godard em uma fase de inquietações políticas sobre as cinematografias do Terceiro Mundo, Glauber Rocha se situa como um caso especial de influência de mão dupla, pois ganhou homenagens em "A Gaia Ciência", de 1968, "Vento do Leste", de 1969, e "História(s) do Cinema", de 1988 a 1998.

Em 1969, no momento mais tenso desse diálogo, Godard e Jean-Pierre Gorin convidaram Glauber Rocha a atuar em "Vento do Leste". Sua crítica à visão demolidora dos membros do grupo Dziga Vertov, coletivo de cineastas de orientação maoísta, produz uma dissonância no filme. Glauber está numa encruzilhada, nas cercanias de Roma, e entoa o refrão da canção tropicalista "Divino Maravilhoso", de Caetano e Gilberto Gil.

"Para lá, é o cinema desconhecido e da aventura. Para aqui, é o cinema do terceiro mundo, perigoso, divino e maravilhoso", diz o diretor brasileiro. "É um cinema que vai construir tudo, a técnica, as casas de projeção, a distribuição, os técnicos, os 300 cineastas por ano para fazer 600 filmes para todo o Terceiro Mundo", acrescenta.

Professor de cinema da Universidade de São Paulo, Mateus Araújo destaca as consequências dessa performance de Glauber nas reflexões maduras de Godard sobre os países subdesenvolvidos. "Embora o diálogo entre eles não tenha prosseguido nos anos 1970, foi talvez sua relação com Glauber que ensinou a Godard a reconhecer seus limites na relação com o Terceiro Mundo, lição que está na base de seu curta fulgurante ‘Câmera-Olho’, de 1967, de seu filme político fortíssimo ‘Ici et Ailleurs’ e talvez até mesmo, mutatis mutandis, de seu comedimento respeitoso diante dos bósnios em ‘Notre Musique’."

A presença de "Divino Maravilhoso" na obra de Godard, através de Glauber, ergueu uma ponte do tropicalismo com um de seus mestres na alquimia da cultura pop. Caetano reconhece o impacto dos filmes "Acossado", "Uma Mulher É Uma Mulher", "Viver a Vida", "O Demônio das Onze Horas" e "Masculino Feminino" no crescimento da ideia tropicalista em seu espírito. Na criação de um imaginário brasileiro, em pleno regime autoritário, o estalo de "Terra em Transe", de Rocha, se somou à influência da liberdade estilística de "Acossado".

A febre das citações, a deglutição do pop e a montagem cinematográfica de imagens nos versos são alguns procedimentos poéticos dos tropicalistas que guardam dívidas com o cineasta da nouvelle vague. "Alegria, Alegria" tem a agilidade da câmera de "Acossado". E o fecho de "Superbacana" espelha "O Demônio das Onze Horas". "Vou sonhando até explodir colorido/ No sol, nos cinco sentidos."

O único longa do compositor, "O Cinema Falado", de 1986, procurou se distanciar da estrutura godardiana, mas, em sua gênese, desenvolveu a ideia de Godard de que um filme poderia se reduzir a apenas uma câmera diante de uma pessoa contando uma história.

No cinema marginal, Júlio Bressane, de "Matou a Família e Foi ao Cinema", Rogério Sganzerla, de "O Bandido da Luz Vermelha", Neville D’Almeida, de "Jardim de Guerra", e Ivan Cardoso, de "Nosferato no Brasil", estiveram atentos à iconoclastia godardiana.

"Godard revolucionou o cinema e, agora, a própria morte ao optar pelo higiênico suicídio assistido", diz Cardoso, que fotografou o ídolo no Festival de Cannes, em 1983. Artista formada numa confluência do cinema novo e do cinema marginal, a atriz e diretora Helena Ignez reconhece as lições de liberdade de Godard. "Eu fui mais godardiana. Rogério [Sganzerla, seu ex-marido] era wellesiano nesse descobrir do cinema moderno. Godard chegou a uma essência do cinema naquele formato pop. O cinema é pop. Ele instaurou a liberdade antes de todos. Era um cineasta completamente de esquerda dentro de seu cinema." Cardoso lembra que "Jardim de Guerra" é o mais godardiano dos filmes marginais. Neville D’Almeida, seu diretor, atende o telefone em lágrimas.

"A morte do Godard é muito próxima da morte do cinema e da liberdade. A liberdade está acabando no cinema. Se houvesse união entre os cineastas brasileiros, era para ter trazido Godard ao Brasil há muito tempo. Se ele tivesse vindo ao Rio, não iria morrer, não cometeria suicídio assistido. Já pensou aquela tristeza da Suíça? Eu me sinto culpado." O diretor volta a chorar. "Eu aprendi com Godard o ideal de liberdade e de não ir com a corrente."

"Godard não era indiferente ao Brasil", diz Araújo, da USP. "Ele já visitara na juventude o Rio de Janeiro, cujas belezas evoca numa crítica de julho de 1959 a ‘Orfeu Negro’ de Marcel Camus, que as teria traído. Mais tarde, ele inclui ‘Vidas Secas’, de Nelson Pereira dos Santos, na sua lista dos dez melhores filmes estreados em Paris em 1965 —na Cahiers du Cinéma de janeiro de 1966. Segundo um depoimento de Glauber, Godard teria intuído a ideia de "A Chinesa" de 1967, ao ver "O Desafio", de 1965, de Paulo César Saraceni no Festival de Berlim de 1966."

Acima das divergências estéticas entre movimentos artísticos, Godard marcou toda a contracultura brasileira, afirma o artista plástico Luciano Figueiredo, que sempre acompanhou suas ideias para pensar os desdobramentos de seu próprio trabalho.

"Sua maneira de filmar, fosse em preto e branco, fosse em cores, parecia nos livrar de dogmas políticos e nos identificava mais em suas não narrativas, nos personagens que sentíamos muito próximos do que queríamos a liberdade, a força e valorização da espontaneidade, a força de almejado hedonismo, que se misturavam na mise-en-scène", diz Figueiredo, criador do projeto gráfico da revista Navilouca.

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