Descrição de chapéu

Entenda por que rainha Elizabeth 2ª foi atacada pelo rock dos Sex Pistols

Iconoclastia punk mirou a monarca para refletir sobre as turbulências socioeconômicas do Reino Unido

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A rainha Elizabeth 2ª, morta nesta quinta-feira, não foi só um símbolo cultural da monarquia, estampado em chaveiros e canecas de suvenir. Para o rock britânico, ela foi alvo da raiva, da depressão e do descontentamento dos jovens com a vida cotidiana da Inglaterra dos anos 1970.

Para as bandas que surgiram naquelas cidades industriais de tempo enevoado, Elizabeth 2º representava tudo o que precisaria ser destruído. Ela era vista como a personificação de uma instituição ultrapassada e tirânica.

As críticas, no entanto, não eram tão pessoais assim. Embora tenha surgido primeiro nos Estados Unidos, o punk tomou contornos definidos na Inglaterra, sendo, por definição, um movimento iconoclasta. Com tanta ira, qualquer monarca seria visto como inimigo dos Buzzcoks ou do Clash.

Retrato da rainha Elizabeth 2ª em 2022
Retrato da rainha Elizabeth 2ª em 2022 - Andrew Matthews/AFP

Afinal, era a uma época em que a Grã-Bretanha vivia um pesadelo econômico. A libra valia pouco, e os gastos públicos levaram a uma inflação de dois dígitos. Em 1976, o governo trabalhista chegou a pedir empréstimos ao Fundo Monetário Internacional, o FMI, na tentativa de sanar as dívidas. Como pano de fundo, a economia tentava se recuperar da desregulamentação do sistema monetário internacional e de dois choques do petróleo.

Nesse contexto, a juventude britânica sofria com o desemprego, fome e frio. Em 1975, Johnny Rotten, Steve Jones, Paul Cook e Glen Matlock se juntaram para formar o Sex Pistols. A banda teria de durar mesmo só dois anos, porque seu único álbum de estúdio "Never Mind the Bollocks, Here’s The Sex Pistols", de 1977, foi uma descarga revoltosa contra o moralismo do sistema político.

Num ataque direto à rainha, a faixa "God Save the Queen" foi lançada como segundo single do álbum, perto da data do jubileu de Elizabeth 2ª. "Deus salve a rainha/ o regime fascista/ eles te fizeram de idiota", diziam os primeiros versos da canção. Nesse surto colérico, fascismo e monarquia eram, para os jovens revoltados, dois regimes tirânicos, ambos formados por opressores, que impediam a liberdade de comportamento e a independência das novas gerações.

"God Save the Queen" é punk em estado bruto. Violência e beleza estão entrelaçadas num som cru, que se forma em só quatro acordes. "Não há futuro/ nos sonhos da Inglaterra/ não deixe que digam o que você quer/ não deixe que digam o que você precisa", cantava Rotten, com a voz esganiçada.

Integrantes da banda britânica Sex Pistols ironizam o uso do canudinho em foto de 1977 - Reprodução

Ainda que tenha alcançado as paradas de sucesso, a música provocou um escândalo no país, enfurecendo a própria rainha. A BBC se negou a reproduzir a música em todos os meios de comunicação. Do mesmo modo, algumas das principais varejistas do Reino Unido, como Woolworths e WHSmith, baniram o disco de suas prateleiras.

No feriado que celebrava o jubileu, a banda fez um show num barco chamado Rainha Elizabeth, que flutuava no rio Tâmisa. Nele, o grupo entoou a canção polêmica. O show foi interrompido pela polícia, que prendeu 11 pessoas, incluindo o lendário produtor do punk, Malcolm McLaren. Em maio deste ano, a faixa foi relançada, na ocasião do jubileu de platina da monarca.

Ao longo do tempo, o rock se tornou o termômetro da popularidade da família real. Em 1965, os Beatles, no auge do frenesi em torno dos meninos de Liverpool, foram recebidos por Elizabeth 2ª no Palácio de Buckingham, onde receberam a condecoração da ordem do Império Britânico. Assim, todos eles passaram a ser tratados como 'sir'.

Em 1969, a banda lançaria "Her Majesty", uma espécie de vinheta incluída no disco "Abbey Road". Em 23 segundos, Paul McCartney toca violão de aço bem ao estilo da música folk e entoa os versinhos "Sua Alteza é uma garota legal/ mas ela não tem muita coisa pra dizer/ quero contar pra ela que a amo muito / mas eu tenho que me encher de vinho." A letra era irônica, mas também expressava certa admiração pela jovem que eles viram ser coroada.

Elton John, também sir, talvez tenha sido o mais próximo da família real. Áulico dos palácios da realeza, sua interpretação de "Candle In The Wind" no funeral da princesa Diana, morta em 1997, foi memorável. Confidente de Lady Di, Elton compôs a obra em 1974, numa homenagem a Marilyn Monroe. Após o pedido da família real, ele reescreveu a canção, prestando reverências à amiga. Sobre a morte de Elizabeth 2ª, o cantor registrou seu pesar nas redes sociais, afirmando que sentirá muito a falta da rainha.

Já sir Mick Jagger, dos Rolling Stones, teve uma relação instável com a monarca. No dia de sua morte, o cantor classificou a rainha como "a amada avó de uma nação". Mas, em 2003, ela não compareceu à condecoração do artista, provocando rumores na imprensa britânica. Segundo os tabloides da época, Jagger seria visto por Elizabeth como uma "má influência". A cerimônia foi conduzida pelo príncipe Charles, e Keith Richards, guitarrista da banda, logo disse à imprensa que Jagger havia sido "ridículo" ao aceitar a honraria.

Se as décadas transformaram Elizabeth 2ª numa monarca fofa, a banda de pós-punk The Smiths reavivou a iconoclastia nos anos 1980.

Em 1986, Morrissey, Johnny Marr, Andy Rourke e Mike Joyce lançaram "The Queen Is Dead", ou a rainha está morta, terceiro álbum de estúdio da banda. A canção de mesmo nome abre o disco, mostrando também uma mudança estética em relação à primeira geração punk. Na Inglaterra ultraliberal da primeira-ministra Margaret Thatcher, a raiva deu lugar ao desalento. "A rainha está morta, meninos/ a vida é muito longa quando se está sozinho", cantava Morrissey.

Sob o aspecto musical, "The Queen Is Dead" tem bateria de pulso firme, marcando os compassos. Sua melodia, porém, se espalha no tempo, como numa balada soturna. A letra recorre a mais imagens do que o hit dos Sex Pistols, lembrando uma Inglaterra romântica, de poetas como William Blake e John Keats. Os solos de guitarra de Marr e a voz grave de Morrissey reafirmam a solidão do eu lírico e desvelam um Reino Unido que já não se sentia contemplado pela coroa.

Em momentos de turbulências políticas, Sex Pistols e Smiths não alvejaram o Parlamento na mesma medida. Segundo eles, era necessário antes dessacralizar a figura de Elizabeth 2ª, um resquício de uma ordem que já não existia. Nesse vazio, eles falavam mal, mas falavam dela.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.