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'Pantanal' expôs como a virilidade surge do ódio contra o feminino

Novela ilustra como relações entre homens mimetizam hierarquia entre gêneros em show de masculinidade tóxica

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Renan Quinalha

Professor de direito da Unifesp e autor de 'Contra a Moral e os Bons Costumes: A Ditadura e a Repressão à Comunidade LGBT' (Companhia das Letras)

Na última semana, a grande audiência da novela "Pantanal", da Globo, assistiu estarrecida às cenas de violência de Tenório contra Maria Bruaca e Alcides. Se sentindo traído com a declaração de amor de sua mulher por outro homem, o personagem interpretado por Murilo Benício deu um show de masculinidade tóxica em rede nacional.

Na versão original da telenovela, exibida em 1990 pela TV Manchete, a vingança de Tenório foi a de capar o peão, algo que também chocou o público à época. A figura do homem traído e incapaz de reconquistar o amor da mulher, já apaixonada por outro homem, compensa sua masculinidade ferida pela castração do outro que o ameaça.

Tenório (Murilo Benício) aponta a arma para Alcides (Juliano Cazarré), e Zaquieu (Silvero Pereira) o ameaça
Tenório (Murilo Benício) aponta a arma para Alcides (Juliano Cazarré), e Zaquieu (Silvero Pereira) o ameaça em 'Pantanal' - Divulgação

Nada menos figurado e mais óbvio do que essa tentativa de restituir a própria virilidade privando outro homem de sua arma mais importante, o falo. A mulher se torna apenas um objeto acessório no reino do patriarcado.

A nova versão com roteiro de Bruno Luperi, no entanto, conferiu novos contornos para essa velha história do duelo entre homens pelo amor de uma mulher. Apesar de ameaçar a castração ao dizer que faria "o que se faz com o touro que come a vaca do outro", o marido traído decidiu impor outro tipo de ataque à masculinidade do seu oponente.

Ainda que não tenha sido explícita, a cena que foi ao ar sugere que Alcides teria sido estuprado por Tenório dentro de um casebre, com Maria Bruaca posta do lado de fora, impotente, apenas ouvindo os gritos e testemunhando o abuso com sua própria imaginação.

O ritual da masculinidade aparece, então, na sua forma mais expressiva quando um homem, feito de "corno manso e frouxo" como diz o próprio Alcides, subjuga o outro em um ato de violência sexual. Para um homem, nada mais penoso do que ser posto na posição da passividade, nada mais ultrajante do que ser "feito de mulher".

Estupro é a violência que, para além de sua dimensão física, simbolicamente subjuga, reforça uma desigualdade associada aos gêneros, imprime uma marca indelével na subjetividade.

A punição imposta por Tenório a Alcides, assim, aparece como pior do que a própria pena de morte. "A minha vingança vai ser deixar você vivo para você aprender o que acontece com quem se atreve às minhas coisas", diz o peão traído. A penalidade será viver o trauma e conviver com a vergonha implacável de ter se tornado um equivalente feminino no universo do masculino.

Em outras palavras, na base da homofobia que estrutura esse regime de virilidade está, precisamente, a aversão ao feminino. Importa menos que sejam dois homens que possam ser lidos como homossexuais e mais que um desempenhe o papel de macho, e o outro, o de fêmea.

Quem penetra, mesmo que outro homem, sai mais fortalecido e masculinizado; quem é penetrado, por outro lado, sai feminilizado e, portanto, degradado. Aqui, o que vale não é o objeto do desejo, mas a performance materializada nos papéis desempenhados por cada um no ato sexual.

Diversos estudos de gênero apontam como as relações entre homens são estruturadas na imagem hierarquizada das relações entre homens e mulheres. Esse conflito retratado na novela "Pantanal" nos evidencia como a construção da masculinidade se dá por um processo de mimetismo de violências —um homem aprende pela dor e pelo sofrimento para, em seguida, impor as mesmas práticas a outros homens, perpetuando um modelo de masculinidade cuja força advém sobretudo do embrutecimento.

Cornos, castração e abusos sexuais são formas contingentes e muito utilizadas, literal e metaforicamente, nos códigos culturais de virilidade que são partilhados e cultivados entre os homens nos mais distintos contextos. Não só no sertão, no Pantanal ou entre peões, mas igualmente nos grandes centros urbanos em que os rituais de aprendizado e aquisição da masculinidade passam pelo mesmo circuito de violências herdadas e repassadas.

Em tempos em que a masculinidade hegemônica e "imbrochável" se torna dispositivo central de políticas catastróficas impostas por governantes em diversas partes do mundo, se torna urgente refletir e debater sobre outras masculinidades possíveis para pôr fim ao ciclo de violências que se estende das telas à vida real.

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