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Daniel Mella aborda o luto sem autopiedade em 'O Irmão Mais Velho'

Autoficção traz narrador consciente de seus abismos em relato sobre morte permeado por retrogosto misógino

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Lívia Prado

O Irmão Mais Velho

  • Preço R$ 54,90 (168 págs.); R$ 38,90 (ebook)
  • Autoria Daniel Mella
  • Editora Autêntica Contemporânea
  • Tradução Sérgio Karam

Por mais que os oráculos anunciem eventos futuros, não se pode mudar seu curso. O salva-vidas Alejandro vai morrer aos 31 anos, eletrocutado por um raio enquanto pernoita numa guarita da praia onde trabalhava. Não há nada que se possa fazer a respeito.

Afiançado no presente, o oráculo profetiza um futuro tão inegociável quanto o passado. Na autoficção "O Irmão Mais Velho", o escritor uruguaio Daniel Mella faz o movimento inverso, reconstruindo o episódio real da morte do irmão como algo que ainda irá ocorrer. A inversão não altera o resultado. Como nas profecias, a sorte de Alejandro está traçada.

O autor Daniel Mella, autor do livro 'O Irmão Mais Velho'
O autor uruguaio Daniel Mella, autor do livro 'O Irmão Mais Velho' - Divulgação

O uso do futuro suspende a dor em um não tempo: sempre a ponto de começar, não tem, portanto, possibilidade de conclusão. Por outro lado, parece responder à necessidade do narrador de exercer algum magro controle, senão sobre o desfecho dos acontecimentos, ao menos sobre seu relato.

Para nascer, basta morrer. Fascinado pela conexão entre esses dois momentos, o narrador argumenta que perdemos o poder sobre eles ao delegá-los a burocratas e médicos. Extrai, assim, algum consolo da ideia de que o irmão teria tido a morte que lhe correspondia, coerente com sua personalidade livre e solar.

Em vez de ceder à elegia ou à ode, Mella —único membro da família cujo nome é mantido na obra— opta pela ambivalência da autoficção, a meio caminho entre a biografia e o romance.

Há um pacto implícito com o leitor. Este abdica da pergunta de quanto é real no livro, e o relato será, à sua maneira, verdadeiro. Algo desgastada pela proliferação de obras autoficcionais nas últimas décadas, a fórmula consiste em deixar irromper a invenção nos interstícios da memória.

Sem autocomiseração, Mella aborda pontos sensíveis sobre o trabalho de luto de sua família nos dias que seguem a notícia trágica. Entre a ternura e o humor ferino, sua perspicácia sobressai na descrição da busca do "assassino".

É necessário responsabilizar alguém pela morte de um jovem tão vital, seja ele mesmo que se arriscou de forma egoísta, seja o pai que o ensinou a amar o surfe. O único inaceitável é que tenha simplesmente morrido atingido por um raio. O arbitrário da morte se impõe, no entanto, às especulações da família.

Agarrando-se à ideia de que os felizes e os talentosos morrem antes, o narrador nos arrasta em sua voragem de sentimentos. Esses incluem o alívio pela sobriedade que a notícia da morte lhe proporciona, liberando-o de sua obsessão pela mãe de seus filhos.

Embora a crueza com que desventra o que há de disfuncional em si mesmo represente um ganho de verossimilhança, esta nem sempre supera o mal-estar gerado pelo lugar, ou acessório ou entronizado, das personagens femininas na obra.

Já o título anuncia que este romance não é lugar para mulheres. Obcecado pela ideia de que deveria ter morrido primeiro por ser o irmão mais velho, o narrador é corrigido pela irmã, a verdadeira primogênita. Rebate, então, que as mulheres não contam. Porque vivem mais, emenda, sem dissipar o retrogosto misógino que permeia o livro.

Essa não é a única vez em que Mella usa as personagens, sobretudo as femininas, para recriminar seu duplo literário. Logo nas primeiras páginas, o narrador é acusado pela mãe de se colocar no centro dos fatos.

Com efeito, a morte do irmão é ponto de partida para que reflita sobre as luzes e as sombras da própria trajetória. Perspicaz no princípio, o recurso de se antecipar às possíveis críticas do leitor se torna cansativo pela repetição ao longo do romance.

Há, contudo, o fascínio de acompanhar um narrador consciente de seus abismos, que sabe inútil sua tentativa de controlar o desfecho de uma história consumada. Alejandro vai morrer aos 31 anos, atingido por um raio no litoral uruguaio, e não há nada que seu irmão mais velho possa fazer. Exceto, talvez, escrever a respeito.

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