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'Erotica' de Madonna é um orgasmo que resiste ao tempo décadas depois

Álbum mais controverso da cantora celebra os seus 30 anos lembrado como um antídoto às trevas da era marcada pela Aids

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São Paulo

O crepitar do vinil e as primeiras batidas graves. "Erotica" já desenhava toda a estrutura do disco nesses primeiros segundos. Era um lugar entre alcova, ou dark room, e pista de dança efusiva.

Da mesma forma que Madonna, nua, pedia uma carona à beira da autopista atrás de abrigo nas fotografias do livro "Sex", seu álbum "Erotica", que chega agora às três décadas de idade como marco da música pop, seguia um arco narrativo explícito. Eram duas baladas febris intercaladas por noites em claro, cheias de sexo e arrependimentos.

Madonna em imagem de seu livro 'Sex'
Madonna em imagem de seu livro 'Sex' - Reprodução

Madonna, de nome predestinado, era a virgem devassada e o demônio entregue aos prazeres da carne como ninguém. E haja carne. A rainha do topo das paradas esnobava naquele instante o pedestal de diva pop para mergulhar numa luxúria grotesca, que, não sem esbarrar em polêmicas, renderia a ela outros louros.

Foi sua entrada para o lado de lá do comércio fácil dos hits chiclete. Numa trajetória de sucesso estrondoso até ali, em que irritou até o papa com suas subversões da iconografia cristã, Madonna enfim chegava mais perto do altar das vanguardas num álbum experimental, a fim de quebrar uma outra leva de tabus.

"Erotica", o primeiro single do disco, era seu abre-alas granuloso —uma voz de ranhuras como o plástico do vinil, rachada no fervo da noite, que clamava por mãos pelo corpo todo. Ali se dava o limite entre público e privado, luz e trevas, noite e dia, dor e prazer, ou seja, todo o claro-escuro de um disco que foi um divisor de águas na obra da mais poderosa das estrelas do pop.

Quando "Erotica" e "Sex" saíram, juntos, com direito a uma festa de lançamento com garotas que desciam da limusine com homens rastejando à frente, de coleira, sua mensagem era clara e afrontosa.

No auge da mortandade da Aids, lá estava uma celebração glamorizada e despudorada do prazer do sexo, do gozo, das drogas, do amor equalizado à troca de fluidos entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres.

Esse hedonismo era tátil —paetês, couro, vinil, o chicote que estala, a cera quente pingando nas costas nuas. Arsenal masoquista à parte, "Erotica" era sensorial até não poder mais, o calor de uma noite doida e doída, um amor atravessado de angústia como foi toda aquela época de lágrimas e vontades castradas.

Foi minha primeira experiência sexual. Tinha oito anos quando ouvi o som abafado de "Erotica" do outro lado da porta trancada do quarto de um primo mais velho, que escutava com amigos, escondido, o mais libidinoso dos discos em que puderam meter as mãos.

Depois de "Erotica", vinha "Fever", releitura de um standard do jazz, belíssimo na voz de Ella Fitzgerald, transmutado então em delírio technicolor por Madonna, a febre de uma época marcada por aquilo que muitos chamavam de peste gay. E a temperatura logo subia na tontinha "Bye Bye Baby".

Mais safada no nome, "Deeper and Deeper" é talvez a mais família de todas as canções do disco, "daddy issues" escancarados nas batidas do house. Madonna lembrava nos versos a influência do pai e as lições da mãe que perdeu muito cedo, numa explosão de libido em contraste com a ideia de amor romântico. Outra leitura da canção dá a entender que se trata de um homem gay tentando lidar com a sua saída do armário.

No fundo, todo o disco que se quis tão subversivo pode ser lido na contramão, uma afirmação do encontro mais terno entre duas ou mais pessoas.

Mas os contrastes ainda são ásperos em "Erotica", um disco de versos que trilham a navalha afiada entre o amor mais puro e a lascívia elétrica —uma coisa se transforma na outra o tempo todo, entre
toques, arrepios, calafrios.

"Deeper and Deeper" é o primeiro clímax do álbum, seguido de outro. "Where Life Begins", no entanto, é desses momentos de metáfora ruim, uma ode mal disfarçada ao sexo oral em mulheres. Talvez seja um ancestral de "WAP", de Cardi B e Megan Thee Stallion, mas não deixa de ser uma afirmação deslizante também do prazer feminino ante o patriarcado da era de Bush pai nos Estados Unidos, crise e caos mundo afora, coisa que estranhamos hoje, é claro.

Na saída da festa, baixando o tom depois do calor das pistas, Madonna chega a soletrar a ressaca —etílica e moral— em "Bad Girl". A faixa em que lamenta estar bêbada às seis da tarde, ter beijado um estranho e fumado cigarros além da conta —quem nunca?— é ao mesmo tempo um momento de vulnerabilidade e celebração de seu poder como uma mulher livre e desimpedida.

Basta rebobinar ao ponto em que o clipe de "Erotica" a mostra prensada entre homens fortões ou dormindo de conchinha com Isabella Rossellini e entre os braços da top model Naomi Campbell.

"Erotica" foi um motor de fantasias escancaradas a contragosto numa época hostil em várias frentes, tanto que não foi um sucesso imediato. Madonna renunciava ali à falsa inocência de "Like a Virgin" para se arriscar como monumento do desejo no terreno movediço de um futuro incerto.

Esse álbum que em grande parte se entrega aos sentidos como um manto de cetim rosa-choque pulsando sobre o bafo quente dos alto-falantes chegou às pistas carregado, ao mesmo tempo, das tintas do expressionismo do cinema alemão, da explosão do hip-hop e do suor metálico da música house. Tudo isso carbonizado devagar pelas chamas de um paraíso artificial.

Nas fotografias de "Sex", orquestradas por Steven Meisel, há uma encenação calculada de orgias quentes, plásticas e viscosas como o petróleo. É uma obra de arte à parte, então condenada como pornografia —como quase tudo que hoje cruze o limiar da decência dos tais cidadãos de bem.

Mais para o final do álbum, Madonna acorda do torpor da culpa católica que sempre ironizou, toma distância das baladas letárgicas, para voltar com tudo à pista de dança.

Não sem antes fazer o que melhor fez em todas as suas décadas de carreira —"Waiting" é uma viagem sombria ao fundo do desejo, quase um rap, sussurrante, em que o pop é tragado para dentro de um lamento que se desdobra em comando, embora ao mesmo tempo frágil e vulnerável.

O desfecho apoteótico passa pelo ativismo político. Se ela denuncia a amiga fura olho em "Thief of Hearts", outra faixa menos memorável, lamenta depois a morte de dois dos muitos amigos vitimados pela Aids na balada "In this Life".

Quem hoje acusa a artista de queerbaiting, ou de se promover às custas da causa gay, talvez pudesse revisitar esse momento que a redime das bobagens da era TikTok.

Toda essa discussão, aliás, mostra outra camada de "Erotica". Se Madonna se firmou pelo controle absoluto que exerce sobre os mundos estéticos que construiu, não deixou de se mostrar humana neste disco.

E a luz no fim do túnel por fim chega em "Rain", quando o sol brilha depois de uma tempestade. Hoje soa vintage, claro, mas "Erotica" ainda se mostra um disco a ser celebrado como um orgasmo, bem longe das trevas e perto da próxima boate em chamas.

Erramos: o texto foi alterado

O nome da faixa "​Erotica", do disco de mesmo nome de Madonna, foi grafado incorretamente. O texto foi corrigido.

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