Foi com base em uma das muitas provocações que a produtora Andréa Alves propôs ao grupo Barca dos Corações Partidos que o dramaturgo Vinicius Calderoni desenvolveu a estrutura do que seria "Museu Nacional - Todas as Vozes do Fogo", espetáculo que marca os dez anos de trajetória do grupo carioca e que chegou ao palco do Sesc Vila Mariana na sexta-feira passada.
Formada por atores e músicos que se revezam nas funções, a Barca surgiu em 2012 nos bastidores de " Gonzagão - A Lenda", montagem dirigida por João Falcão em homenagem ao rei do baião, e ampliou sua figura criativa em 2014, com "Ópera do Malandro", de Chico Buarque, também assinada por Falcão.
A partir de 2016, a companhia expandiu assinatura autoral em músicas e performances que deram origem a "Auê" e desaguaram em "Suassuna - Auto do Reino do Sol", divisor de águas na trajetória do grupo, responsável ainda pela nova encenação de "Macunaíma", dirigida por Bia Lessa, mas aquém de seu histórico, e pelo recente "Jacksons do Pandeiro".
Com essa bagagem, a companhia mergulhou na proposta de Alves e na dramaturgia de Calderoni —que também assina a direção— não só para contar a história do Museu Nacional, que ardeu em chamas em 2018, mas para montar um panorama da história da cultura no Brasil, além de propor uma discussão sobre a política de sucateamento do setor ao longo do último século.
"A desmobilização, o abandono e o descaso têm a ver com aqueles a quem interessa manter funcionando um polo de cultura, com projetos de poder e com o tipo de coisa que se valoriza coletivamente. Isso é muito flagrante no Brasil em projetos como o do atual governo", diz o diretor.
Autor de obras como "Elza - O Musical" e "Arrã", pelo qual ganhou um prêmio Shell, Calderoni afirma que essa é a montagem mais desafiadora de sua carreira.
Sem ter como base uma obra da qual pudesse partir para contar a história, o artista se inspirou num diálogo constante com os componentes da Barca, que assinam as músicas inéditas sob a direção musical de Alfredo Del-Penho e Beto Lemos.
Foi dessas conversas e trocas que o dramaturgo abriu uma linha de discussão acerca do afrofuturismo, que retrata um Brasil com religiões de raízes afro bem no centro do debate social, para discutir a forma que o apagamento racial influenciou na cultura e na história ensinada dentro de sala de aula.
A montagem marca posição em uma discussão na qual não é possível se omitir, embora não alimente expectativas sobre aqueles com quem a produção vai falar, ou mesmo se vai conseguir se comunicar com quem está fora da bolha daqueles que já discutem a cultura normalmente.
No musical, Luzia, o fóssil mais antigo encontrado nos escombros do museu, propõe uma viagem pela história do espaço desde sua fundação, na Quinta da Boa Vista, quando dom Pedro 2º ganhou o terreno de presente de Elias Antônio Lopes, um famoso traficante libanês de pessoas escravizadas.
A montagem mostra passagens como a chegada dos primeiros visitantes, seus primeiros funcionários e as obras que foram constituindo o acervo do museu, até chegar aos inúmeros pedidos de verba para reformas e reparos, sucessivamente negados.
Em 2018, o diretor do espaço, Alexander Kellner, afirmou que o orçamento havia sido reduzido, e que o museu recebia apenas 60% da verba de R$ 550 mil que deveria ser repassada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Em 2019, o governo Bolsonaro anunciou o corte de R$ 12 milhões no orçamento do museu. A fachada só pôde ser reinaugurada em 2022. "O Museu Nacional em chamas é o cartão postal do abandono da cultura no Brasil", diz Calderoni.
Com elenco formado pelos atores convidados Ana Carbatti, Aline Gonçalves, Adassa Martins, Felipe Frazão, Lucas dos Prazeres, Luiza Loroza e Rosa Peixoto, além dos componentes da Barca dos Corações Partidos --Adrén Alves, Alfredo Del-Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios e Ricca Barros. O espetáculo tem apresentações até 30 de outubro.
Marco nas comemorações de 30 anos da Sarau Agência, responsável por montagens como "Gota D'Água [A Seco]", "Sísifo", com Gregorio Duvivier, e "A Hora da Estrela ou O Canto de Macabéa", "Museu Nacional - Todas as Vozes do Fogo" é, na visão de Andréa Alves, essencialmente "uma ajuda na preservação do patrimônio de um país".
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.