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'Fé e Fúria' acompanha neopentecostais que atacam religiões afro

Documentário de Marcos Pimentel analisa laços entre política e religião em comunidades do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte

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Fé e Fúria

"Fé" e "fúria" são duas palavras que andam juntas muito antes de Marcos Pimentel conceber seu documentário sobre o assunto. No momento, no entanto, ele é extremamente atual. Diversas confissões, cristãs ou não, já conviveram mais pacificamente no Brasil.

Há alguns anos, no entanto, ramos do pentecostalismo iniciaram um programa de opressão contra outras crenças. Quando isso começa? Difícil dizer, embora seja certo que desde a compra da TV Record pela Igreja Universal do Reino de Deus, em 1989, essa tendência se aprofundou.

Cena do documentário 'Fé e Fúria', de Marcos Pimentel - Divulgação

Na época, os bispos e pastores do programa Fala que Eu te Escuto estabeleciam uma perfeita oposição entre sua crença e o que chamavam de espiritismo, referindo-se, a rigor, às crenças de matriz africana.

Hoje, em "Fé e Fúria", a mesma distinção aparece, um tanto mais explícita, com a palavra umbanda, num ensaio de critério etimológico meio apressado —já que ela tem raiz africana, o que complica bem as coisas.

Certo é que nos cultos afro-brasileiros ocorrem certas cerimônias que podem ser assimiladas ao conceito de magia, o que tornaria a adesão a essa espécie de culto contrária aos preceitos cristãos.

Por extensão, alguns neopentecostais ganham o direito de dizer a esses crentes que vão para o inferno ou, em certos casos, de atacar e mesmo destruir os seus locais de culto. É disso que o documentário de Pimentel trata extensamente.

A oposição, no entanto, pode ser sintomática da proximidade entre as duas crenças. As práticas mágicas dos umbandistas, por exemplo, não ficam tão longe assim da prática de exorcismos, a que a doutrina desse movimento cristão recorre com frequência.

Tirar o diabo do corpo do paciente implica um contato com o sobrenatural, pela oposição entre a força de Jesus —encarnada pelo pastor— e a do demônio, que toma o crente de diversas maneiras —bebida, droga, prostituição, adultério são formas recorrentes de possessão demoníaca mencionadas no filme.

A concorrência entre religiões afro-brasileiras e cultos neopentecostais é, assim, evidente. Concorrem pelas mesmas almas e o recurso a fórmulas mágicas é comum a ambas.

Segundo "Fé e Fúria", no entanto, existe no Brasil não propriamente uma guerra entre religiões, mas a guerra de uma determinada igreja, a neopentecostal, contra as religiões afro-brasileiras.

Nessa disputa, os cultos de matriz africana seriam perseguidos sistematicamente, ao menos em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, os locais de filmagem do documentário.

Daí, o filme destaca caráter agressivamente proselitista do neopentecostalismo. Ao vivo ou pela TV existe a necessidade de conquistar novos adeptos para Jesus —aliás, herança do catolicismo. Como tem por alvo uma maioria de pessoas pobres —ou, como se diz na era neoliberal, vulneráveis—, parece claro que os adeptos dos cultos afro sejam assediados.

Esse assédio se torna mais grave quando é associado à polícia, ao tráfico ou às milícias, conforme afirmam alguns pais de santo. Um crente negro seria mais respeitado por policiais ou milicianos do que outros.

De resto, os pastores exigem uma devoção total dos crentes para que atinjam seus objetivos. O maior deles seria, a julgar por alguns testemunhos, não ser tomado pelos demônios com que são confrontados em tempo integral.

O terrível imaginário que frequenta a periferia ou as favelas das grandes cidades hoje parece dominado por ideias do gênero, cuja expansão atualmente passaria por atormentar, ameaçar e mesmo destruir os locais de culto ditos espíritas.

Líderes neopentecostais —no Congresso Nacional ou assemelhados— não escondem o objetivo final de instalar uma república cristã no Brasil, o que supõe, a médio prazo, a submissão mesmo do catolicismo.

Essa é outra questão de se depreende deste documentário de feitura tradicional, baseado essencialmente em depoimentos. Mas lança questões importantes seja quanto à vinculação entre política e religião, seja quanto à intolerância religiosa.

Um assunto que interessará diretamente a antropólogos e cientistas políticos, mas que implica, com certeza, qualquer cidadão.

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