Descrição de chapéu
Gal Costa

Gal Costa foi explosão de tesão e revolta nos cacos da democracia

Do ambiente soturno de 'A Todo Vapor' a 'Cantar', artista entoou as dores da repressão e a liberdade da redemocratização

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Renato Contente
São Paulo

Quando Gal Costa subia ao palco do teatro Tereza Rachel para encenar "Gal a Todo Vapor", ela dançava graciosa e corajosamente com as sombras. Na ausência forçada de Caetano Veloso e Gilberto Gil, exilados em outro continente, ela juntava os cacos quebrados da democracia brasileira e expunha ao público vibrante uma estranha colagem de revolta, tesão, raiva e resiliência.

Cantora Gal Costa na praia de Itapuã, Salvador - Agilson Gavioli/Divulgação

A vingança de Gal contra a ditadura militar e os seus mortos e violados era gritar, com o coração vagabundo em chamas, que ela era amor da cabeça aos pés. A prisão e o posterior exílio de três anos de Gil e Caetano, no final dos anos 1960, fizeram com que Gal perdesse o chão.

Sem seus maiores alicerces pessoais e artísticos, ela saiu de São Paulo em direção ao Rio de Janeiro em busca de colo e novas parcerias. Jards Macalé, Waly Salomão e o produtor Paulo Lima, com quem morou no início dos anos 1970, a ajudaram a se recompor e a canalizar a sua dor em uma mensagem na garrafa dedicada aos amigos de além-mar.

Desse encontro, Gal, que já havia sido a Gracinha bossanovista e a Gal explosiva tropicalista, renasceu como a ponta de lança da resistência artística à ditadura, no papel de protagonista do desbunde carioca. Uma pequena revolução aconteceu nas cerca de dez semanas em que "Gal a Todo Vapor", depois acrescido de "Fa-Tal" em disco, esteve em cartaz no Therezão, de outubro de 1971 e janeiro de 1972.

No microcosmo daquele teatro-poleiro, de estrutura duvidosa, na sobreloja de número 49 de um shopping center de Copacabana que hoje abriga sebos e antiquários, foi desenvolvida uma espécie de laboratório do que no futuro viria a ser a democracia brasileira, como definiu o músico Jorge Mautner.

Ele se referia à extensão daquele microcosmo que correspondia a um pequeno trecho da praia de Ipanema, antes abandonado por conta da construção de um emissário submarino para lançar dejetos ao mar. Um grande píer de ferro e madeira foi construído para o desenvolvimento da obra.

Para instalar as pilastras em alto-mar, foi preciso remover areia submarina, o que gerou dunas volumosas. Era ali onde Gal se bronzeava, junto a Macalé e outras ovelhas negras, antes de subir ao palco diariamente.

Alçada ao posto de símbolo sexual e bússola da contracultura brasileira, o que se expressava também na sensualização de sua performance sobre o palco, ela virou a grande atração do píer abandonado, que passou a ser frequentado por artistas, intelectuais, desbundados e outros opositores à ditadura. Viraram as "dunas da Gal".

O espetáculo era composto por dois atos de revanche contra a ditadura —no primeiro momento, Gal surgia solitária ao violão, sob um tamborete japonês, emitindo canções doídas e melancólicas. Com pesar, comunicava a plateia que tudo em volta estava deserto.

Ela adensava o sentimento de mergulho em areia movediça no qual o país estava envolto em "Vapor Barato", de Waly e Macalé. O "baby" dócil do tropicalismo não cabia mais àquela altura. Quem havia tomado o seu lugar era uma "honey baby" para quem Gal projetava um lamento gutural de um bicho triste, um grito agudo como a dor de quem o emite, projetado para ser ouvido a grandes distâncias.

No ato seguinte, acompanhada de uma banda de rock pulsante, ela vivenciava sobre o palco uma erupção violenta. Na transição entre um ato e outro, Gal assinalava que a dor era para ser gritada alto, ao passo em que acionava um importante carpe diem para os corações aflitos.

"Não se assuste, pessoa, se eu lhe disser que a vida é boa." Ao fim do segundo ato, quando a plateia intuitivamente subia ao tablado aos pulos, um frevo febril de Caetano comunicava uma súplica desesperada importada do exílio. "Não se perca de mim/ Não se esqueça de mim/ Não desapareça."

A temporada foi pensada para ser encerrada em novembro, mas ganhou sobrevida em janeiro de 1972 por uma notícia importante. Caetano, Gil e Guilherme Araújo, produtor tropicalista que havia embarcado para Londres com os artistas, voltariam em definitivo naquele mês.

Para comportar a euforia do momento, Gal alterou a estrutura do espetáculo e adicionou um terceiro ato apenas com canções carnavalescas, entre frevos e marchinhas. Sinalizava, com isso, que a festa, o Carnaval e os corpos em chamas constituíram um arsenal poderoso contra os dedos em riste da ditadura militar.

Quando Gal recolheu as garras e se assumiu como "entertainer" da beleza, a partir do álbum "Cantar", de 1974, ela foi cobrada por quem via naquela transição um "entreguismo político". Ao incorporar uma persona festiva de musa das massas, prestes a embarcar nos anos 1980, também foi mal compreendida por alguns, embora ovacionada por multidões.

Em espetáculos como "Gal Tropical", de 1979, e "Festa do Interior", de 1982, retomava o espírito vingador carnavalesco no repertório e incorporava uma persona solar. Os balancês, blocos do prazer e corações pegando fogo que ela apresentava sob plumas e paetês atiçavam os ânimos de um país exaurido de um pesadelo militar.

"Vai ter que dar, vai ter que dar", repetia em mais um frevo de Caetano. Com performances esfuziantes, organizava multidões que vibravam na sintonia do fim do arco político dos ditadores e do início de um processo de redemocratização.

Gal se manteve atenta e forte aos desdobramentos da política brasileira e os narrava, ao seu modo, sobre o palco. Ela se eterniza como a bússola e a orientação, no campo cultural brasileiro, de um país que ainda não conseguiu acertar as contas com o passado, mas que resiste a diversas tentativas de apagamento e revisionismo de aspectos dolorosos da nossa história.

Com coragem e doçura, Gal nos deu as mãos e nos apontou generosamente os caminhos que levam à grande beleza, sendo uma delas, sem dúvidas, a nossa democracia.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.