Gal Costa tem várias camadas ainda não exploradas em sua biografia

Trajetória da cantora extrapolou o campo da música, flertando constantemente com outros territórios da arte

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Victor Gorgulho
São Paulo

O posto de "musa da Tropicália", alcunha onipresente na trajetória de Gal Costa, talvez guarde, em si, muitas outras camadas semânticas ainda não amplamente exploradas na biografia da cantora. Se compreendida como um movimento tentacular, que espraiou-se pela música, pelas artes visuais, pelo teatro, o cinema e além, a Tropicália da qual Gal sempre foi tida como emblema máximo, revela as diversas aproximações da artista com outros campos da arte, evidenciando um caráter multidisciplinar — e, portanto, verdadeiramente experimental— de sua obra.

Hélio Oiticica, por exemplo —autor da obra homônima ao movimento, o penetrável "Tropicália", de 1967, exibido pela primeira vez na exposição "Nova Objetividade Brasileira", no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro— nutria profunda admiração por Gal, chegando a colaborar com a cantora em diferentes momentos da trajetória de ambos. Em 1969, o artista afetuosamente batiza um de seus penetráveis de "Penetrável da Gal (Ninho da Gal)", obra que consiste em uma estrutura fixada no teto do espaço expositivo com inúmeros fios de plástico azul a penderem até o chão. O espectador era convidado a atravessar uma imensidão de azul que assemelhava-se a um mergulho no mar ou, quem sabe, ao torpor causado pela audição da voz de sua amiga Gal.

Gal Costa, que morreu nesta quarta-feira (9), aos 77 anos - Arquivo Nacional

Naquele mesmo ano, HO assinaria o cenário do show da cantora na Boate Sucata, no Rio de Janeiro. Planejado para acontecer no Canecão (a tradicional casa de shows carioca que fechou suas portas no ano de 2010), o espetáculo de Gal seria dirigido por José Celso Martinez, do Teatro Oficina, com a ambientação cenográfica criada por Hélio. Zé Celso, no entanto, não chegou a um acordo financeiro com a produção e não seguiu à frente do espetáculo, deixando que Oiticica criasse uma ambientação próxima a seus ninhos e penetráveis, que envolviam a performance da cantora. No repertório, sucessos de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto e Erasmo Carlos e mais. Ali, Gal afirmava (aos berros, muitas vezes, ainda que sempre afinada) uma identidade artística radical e de vanguarda. "Meu nome é Gal", cantava, implacável, para deleite do público.

Tamanha foi a aproximação artística e afetiva de Gal e HO que, em dado momento, a dupla chega até a dividir o apartamento em que moravam no Rio de Janeiro, fato que Oiticica conta em uma de suas cartas à Lygia Clark. Após o êxito do show de 1969, o ano seguinte veria uma nova colaboração entre o artista e a cantora, desta vez materializada na capa do disco "LeGal", lançado em 1970 pela cantora.

Concebida por Hélio, a capa do LP revelava o rosto de Gal partido entre a capa e a contracapa, ao passo que o icônico cabelo da artista aparecia como formas onduladas sobre as quais o artista realizou uma colagem de pequenas imagens de origens diversas. Imagens que tanto revelam o zeitgeist contestador de então (como a multidão jovem que parece marchar em protesto político) junto de retratos de ídolos como James Dean e Janis Joplin, costurados à fotografias íntimas de seus amigos de então: Caetano Veloso, Lygia Pape, Jards Macalé, Rogério Duarte, entre outros.

A partida de Veloso e Gil para o exílio em Londres também contribuiu, possivelmente, para que Gal se aproximasse cada vez mais da turma artística que habitava a espécie de bolha utópica que frequentava a praia de Ipanema na época. Presença quase diária nas areias do trecho da praia que separava os bairros de Ipanema e Leblon, Gal via seu status de musa crescer a ponto do local ser batizado de "as dunas da Gal" ou, para os iniciados, "as dunas do barato".

Era ali o ponto de encontro das mais variadas figuras artística da época: dos músicos e poetas marginais (Macalé, Jorge Mautner) à turma do teatro (os membros da companhia Asdrúbal Trouxe o Trombone, para citar alguns), todos estavam a orbitar em torno da presença de Gal, que transitava com êxito entre as variadas pontas do território do desbunde.

No que toca à sétima arte, a cantora parecia pender mais para o lado dos cineastas do dito "cinema marginal" (Rogério Sganzerla, Júlio Bressane) do que para a turma do Cinema Novo (como Glauber Rocha, de quem também era amiga, avessa à polêmicas e rivalidades como sempre foi). A produção fílmica de Sganzerla e Bressane, radical em linguagem e métodos de realização, parecia agradar a baiana, que chega a participar de um filme de Sganzerla, onde performa a canção "Eu sou terrível" (Roberto Carlos), entre risadas e cuspes de champanhe diretamente nas lentes da câmera.

Sua performance não se contia aos palcos: ainda que recusasse qualquer alcunha próxima a de "atriz", Costa apareceria ainda, ao longo das décadas, como Carmen Miranda no filme "O Mandarim" de Júlio Bressane e como si mesma, por diversas vezes, em telenovelas da Rede Globo. Poucas foram as tramas do falecido autor Gilberto Braga, por exemplo, que não tiveram como tema musical uma canção entoada por Gal, além de sua presença na frente das câmeras, fosse cantando ou apenas dando o ar de sua graça feito a musa que era, de artistas e realizadores de todos os campos criativos possíveis.

Em 1994, o controverso Gerald Thomas dirigiria Gal no polêmico show "O Sorriso do Gato de Alice", em que a cantora deixava à mostra seus seios ao entoar "Brasil", o hit de Cazuza que embalava a trama de "Vale-Tudo", novela de Braga na Rede Globo. Altamente performático, o espetáculo dividiu as opiniões e viu, à época, Gal ser contestada na esfera pública acerca da escolha de Thomas para o papel de diretor. As polêmicas, no entanto, apenas acenderam mais a fogueira que sustentava o show, que se encerrou após longa temporada de ingressos esgotados e de muito bafafá na imprensa nacional.

Na abertura do show dirigido por Thomas, Gal adentrava o palco engatinhando, misteriosa e lasciva, a farejar o território que viria a desbravar nas horas seguintes, em sua performance radical. "Gal nunca teve medo", Caetano dizia no texto de apresentação do ousado disco roqueiro-psicodélico da cantora, em 1969.

Ao longo de sua vida, Gal desmentiu Veloso em diferentes ocasiões, brincando que sentia medo sim, em toda e cada performance que executava. Medo, no entanto, que nunca paralisou ou limitou as fronteiras de atuação e alcance da performance da baiana. Gal não é apenas uma das maiores cantoras do Brasil ou da MPB. Talvez seja, sim, uma das maiores artistas brasileiras de todos os tempos. "Eu sei que é assim", diria Veloso, aqui corroborado em gênero, número e grau —e no som da voz de Maria da Graça.

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