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Gerald Thomas

Gerald Thomas: Divina, Gal Costa era pioneira como artista e mulher

Décadas depois de ajudar Hélio Oiticica a montar um cenário para ela, seria eu a dirigir o polêmico 'Sorriso do Gato de Alice'

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Gerald Thomas
Nova York

Estou aos prantos sentado olhando as águas do East River pois foi aqui que tudo começou: "Alô? Gerald? É Gal."

Eu ainda morava em Williamsburg, Brooklyn, e o ano era 1993. "Eu assisti teu 'Nowhere Man' e queria conversar com você. Estou em Nova York, vamos conversar?". Quase cai da cadeira. Por que? Porque minha vida com a Gal começa assim.

A cantora Gal Costa durante a estreia do show 'O Sorriso do Gato de Alice', ao lado do diretor Gerald Thomas, no Rio de Janeiro - Luciana Whitaker - 3.mar.94/Folhapress

Eu tinha uns 13 ou 14 anos de idade, e depois de alguns debates muito intelectuais sobre o futuro da arte, sobre Jimi Hendrix e Marcel Duchamp, Hélio Oiticica me deu uma ordem: "Boneca, venha me ajudar a terminar o cenário para o show de Gal Costa na boate Sucata."

Meu trabalho consistia em costurar e amarrar filamentos azuis de plástico em uma grade que ficaria suspensa na entrada da boate e pela qual a plateia teria necessariamente de passar para chegar a seus lugares. Hélio queria arruinar os penteados das senhoras pseudorrefinadas da alta sociedade do Rio de Janeiro e de São Paulo, que compareceriam com suas roupas caras. De um modo muito conceitual e elegante, queria "destruir" a própria elegância. E conseguiu.

Quem diria! Quem diria que 26 anos depois, seria eu a dirigi-la no show mais comentado, mais polêmico, mais isso e mais aquilo, o "Sorriso do Gato de Alice". Às vezes me belisco.

Estou aos prantos sentado olhando as águas do East River, impactado com a noticia da morte da amiga, diva, musa, a maior cantora de todos os tempos, Gal Costa. Na verdade, são turbilhões de memórias, sensações, ideias que me vêm a cabeça, claro. Lágrimas.

A cantora Gal Costa, com os seios de fora, durante performance na estreia do show 'O Sorriso do Gato de Alice', dirigido por Gerald Thomas, no Rio de Janeiro - Luciana Whitaker - 3.mar.94/Folhapress

"Olha o raio!!! Gal, olha o raio!!!" Gal não estava acostumada a uma direção cênica. Estávamos no palco do Imperator, no Rio, há dias da estreia.

Um caos total entre carpinteiros e técnicos de todas as espécies e o mestre de palco argentino Pepe chegava no meu ouvido para perguntar se deveria expulsar os fotógrafos e câmeras da imprensa. Ele notava que precisávamos de calma. Sim, precisávamos. "Olha o raio!!! Gal, olha o raio!!!" "Ah sim, pois é, eu sempre esqueço".

O meu medo era justamente a quantidade de deixas (tanto de luz quanto de movimentos) que Gal precisava aprender, num cenário e numa luz que sequer se mostrava pronta e com uma banda ainda não completamente ensaiada, escondida atrás de uma tela de filó empoeirada. Calma. Calma.

Me vinham na cabeça as imagens da boate Sucata de décadas anteriores e do caos que era. Gal nem sabia então quem eu era. Meu Deus quanta mudança. Que loucura tudo isso. Já tenho uma enorme carreira atrás de mim, mas Gal?

A notícia de hoje é devastadora porque a morte é devastadora. Eu não sou maduro para encará-la ou aceitá-la. Eu amo a Gal. Para sempre Gal.

Quando eu a olhava, sentado no camarim, seja no Imperator ou em qualquer outro teatro, esquentando a voz, cantando "Solitude" de Billie Holiday, eu entendi que Gal era uma cantora de blues, uma mulher que navegava a vida entre a tristeza e o sublime, se jogava de cabeça na aventura da arte e, justamente por isso se comunicava com Deus.

Sua voz era um veículo de Deus. E por ser um veiculo de Deus ela era pioneira, absoluta pioneira seja na tropicália, seja em postura de vida, seja como mulher, diva. E sabem por que? Porque GAL COSTA MOSTRAVA SUA CARA!!!

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