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Livros

José Saramago precisava do editor como amigo e via leitores como família

Luiz Schwarcz conta como trouxe o Nobel à Companhia das Letras e consolidou relação íntima com ele

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Luiz Schwarcz

Editor da Companhia das Letras

O ofício do editor depende um pouco de que escritor ou escritora ele tem à sua frente. Em alguns casos, nosso trabalho entra em cheio no texto, se infiltra na concepção da escrita e permite que o diálogo tenha papel formulador e realmente afete o resultado da obra. Em outros, a interferência é mais sutil.

José Saramago sempre precisou mais dos seus editores no aspecto pessoal e mercadológico, requisitando menos um diálogo literário profundo. Seus livros eram planejados em detalhes, por meses, depois passados a lápis antes de serem transcritos para o papel em máquina de escrever, por duas vezes, e, mais à frente em sua carreira, direto no computador.

josé saramago escreve em mesa à contraluz
O escritor José Saramago em fotografia do álbum biográfico 'Saramago - Os Seus Nomes', que sai pela Companhia das Letras - Fundação José Saramago

Eu me transformei em editor de Saramago no Brasil por força do acaso. Numa conversa no final de uma Feira de Frankfurt, ao falar sem premeditação que José, naquela época, era meu autor favorito, o tal destino caiu no meu colo.

A agente literária que representava Saramago ouviu meu comentário com mais interesse do que eu esperava e perguntou se eu podia voltar para a feira dali uma hora, pois a obra do escritor estava prestes a ser transferida para outra editora no Brasil.

Minha mala estava pronta, mas é claro que disse que toparia vir mais uma vez à feira naquele sábado. Em uma hora, a obra de José Saramago foi passada à Companhia das Letras. Os acasos, que são tão importantes nas tramas de seus romances, também o trouxeram para perto de mim.

Luiz Schwarcz de braços cruzados
O editor Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras - Divulgação

Logo em seguida, José e Pilar del Río, sua mulher, vieram lançar "A Jangada de Pedra" no Rio de Janeiro. Foi nessa cidade que imprimi alguma qualidade pessoal ao meu trabalho de editor, me transformando, aos poucos, quase num membro da família do autor, ou melhor, adicionando José e Pilar como membros da minha família.

Nessa primeira estada no hotel Ouro Verde, na praia de Copacabana, José me pediu se poderia, na próxima visita ao país, se hospedar em na nossa casa, e não em hotéis. Assim comemoramos vários aniversários de Saramago em São Paulo, na nossa sala de jantar, visitamos Tiradentes, Salvador, Santo Amaro da Purificação e muitos outros locais. As viagens eram a quatro ou a seis, de preferência a seis, com Júlia e Pedro, nossos filhos.

Tive a emoção de ouvir, lido em primeira mão por José em seu apartamento em Lisboa, o segundo livro dele que editei. Para o terceiro, fui com Pilar comprar o primeiro laptop de Saramago no shopping das Amoreiras. A partir daí passei a ter o privilégio de ler os originais junto com seu editor português.

Confesso que, mesmo com esse enorme reconhecimento, mantive a modéstia de aceitar que José precisava pouco de mim. Eu fazia observações mínimas, sem esperar que fossem aceitas. Depois do texto pronto, fui de alguma valia ao preparar nossa edição, ajudar a organizar a venda e a divulgação.

Além do afeto que recebia em nossa casa, também contava muito ao escritor português a amizade e o carinho que recebia das pessoas que trabalhavam na editora. Isso só prova como funcionava este congraçamento ideal para José. Autor, personagens, leitores, editoras e editores eram família.

A literatura criava laços fortes, que, por vezes, traziam desafios. No lançamento de "A Jangada de Pedra" no Rio de Janeiro, os leitores demonstravam tanto afeto por José —acariciando, beijando, benzendo— que, no final do evento, exausto, ele me disse: "Ó Luiz, esta gente quer me matar de amor. E vai!".

Assim também aconteceu nos inúmeros eventos no Sesc, quando ele não impunha limites ao tempo dos autógrafos e respondia com irritação quando lhe diziam apenas o primeiro nome: "Sua identidade completa, cara senhora, é o que quero guardar nesse exemplar".

Em meio a convivência tão íntima, não foi possível escapar de uma rusga. Numa dada manhã recebi um telefonema do meu pai, que, com a voz embargada, me relatava que Saramago, em Ramallah, havia comparado os campos de refugiados palestinos ao campo de extermínio de Auschwitz.

André escapara, quando tinha 19 anos, do trem que o levava ao campo de Bergen Belsen com seu pai, que, não conseguindo fugir, ficou no vagão em direção à morte.

Meu pai balbuciava, quase chorando de decepção, revoltado com a comparação infeliz do meu grande amigo português. E me dizia com seu jeito bastante simples: "Mas ele não era nosso amigo?". Respondi que amizades se fazem assim, com divergências, mas me comprometi a falar com o escritor.

E assim foi. Numa vinda de José e Pilar a São Paulo, quando pudemos levá-los para um fim de semana em nosso sítio na Mantiqueira, planejei uma visita, no fim da tarde, à linda Pedra do Baú. Combinei com Lili, minha mulher, que quando estivéssemos no alto, com o horizonte à nossa frente, ela se ocuparia de Pilar, para me deixar a sós com José.

Olhando para o vale, contei a ele da tristeza que causara a meu pai e afirmei minha opinião. Disse que discordava totalmente das atitudes do Estado de Israel com os palestinos, mas também lamentava a comparação entre situações muito distintas. Não era preciso ir ao Holocausto para criticar Israel.

Não sei com quantos autores me permitiria discordar frontalmente como fiz, mas o resultado da conversa, inicialmente difícil, foi uma amizade ainda mais consolidada e um pedido —reiterado até o fim da vida— de que eu compreendesse que não havia sido exatamente essa a sua declaração.

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