Saidiya Hartman traz à Flip sua busca pela beleza negra que desvia da barbárie

Referência em estudos da escravidão e da diáspora africana, autora resgata figuras negligenciadas com obra inventiva

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Paraty (RJ)

A americana Saidiya Hartman desviava das pedras de uma rua em Paraty quando ouviu uma pergunta sobre o que estava achando da cidade.

Respondeu com um elogio automático à beleza charmosa da vila colonial, depois crispou a boca e ergueu as bochechas num sorriso apertado. Comentou algo sobre como estudar o passado tantas vezes é estudar a história da barbárie.

Convidada da Flip neste sábado (26), Hartman se destaca cada vez mais como referência nos estudos da escravidão e da diáspora africana, com uma obra inventiva que não tem medo de mergulhar em recursos literários.

A escritora americana Saidiya Hartman em Paraty, onde participa da Flip - Zanone Fraissat/Folhapress

Em seu livro "Perder a Mãe", a pesquisadora elabora os sentimentos contraditórios de encontrar, numa viagem em busca de suas raízes em Gana, lacunas documentais e uma sensação de não pertencimento que era o oposto que esperava sentir.

Se esta obra é marcada por vazio e perda, "Vidas Rebeldes, Belos Experimentos" observa a experiência negra pela lente da inspiração, das potencialidades, narrando histórias de mulheres negras do começo do século 20 que rompiam barreiras de comportamento de forma revolucionária.

"‘Perder a Mãe’ pensava o que era um mundo nascido da devastação, da ruptura do tráfico atlântico. Era sobre como viver com essa memória. ‘Vidas Rebeldes’ também explora essa dinâmica, porque a escravidão tinha acabado, mas aquelas pessoas foram jogadas numa situação ainda brutal e tinham que pensar como sobreviver."

Os dois livros, segundo ela, equilibram a tragédia e o romance partindo de um mesmo desafio. "Como é possível imaginar a vida num contexto de clausura racial? Como criar a beleza num contexto em que as pessoas não têm calorias o suficiente para sobreviver?"

Ao captar a vida dessas mulheres, Hartman parte de retratos sociológicos e policiais, que abomina, mas entende como fonte inescapável de pesquisa. Ao procurar o que há de humano nas figuras descritas naquela papelada, tece narrativas pulsantes de vida.



"Minhas histórias vinham de arquivos de reformatórios e prisões, então tinham a textura do cotidiano. Tive acesso a experiências muito mais vívidas, corpóreas, sabia o que aquelas jovens gostavam, quais palavrões falavam."

O que Hartman queria era enquadrar essas mulheres num retrato que não fosse pintado de vergonha ou punição, pelo contrário. Queria algo mais complexo. Um bom exemplo é o da garota Mattie, de 15 anos, presa após se envolver sexualmente com um homem mais velho.

Todas as meninas presas por rebeldia, diz a autora, eram obrigadas a renunciar ao que tinham feito, dizer que queriam melhorar, formar uma família, para serem liberadas. "Mattie também faz essa declaração, mas antes ela diz: eu quis fazer isso."

"Não é algo leve, o futuro dela envolveu uma gravidez indesejada e uma prisão, mas ainda assim, ela deixou que escrevessem em seu arquivo claramente que ela quis fazer sexo naquele momento."

A escritora aponta que um de seus objetivos com "Vidas Rebeldes" era "honrar a coragem e o desprendimento necessário para que essas mulheres seguissem suas vontades e desejos".

A sexualidade é um aspecto central do livro, e não à toa. No momento histórico que Hartman pesquisa, o ambiente doméstico era um dos espaços em que as mulheres tinham mais autonomia sobre si mesmas —era ali, portanto, que podiam mais se exercitar, criar e transgredir.

Hartman quer descrever, em seu livro, "a revolução antes de Gatsby", mostrar que os Estados Unidos já eram modernos antes dos loucos anos 1920. Mas não nos domínios brancos e, sim, nos guetos.

Todo o projeto da americana lembra o que estamos observando acontecer com Maria Firmina dos Reis. É uma autora abolicionista cujo caráter precursor foi, por muito tempo, apagado dos registros oficiais.

Hartman concorda quando ouve que Firmina guarda similaridades com as personagens por que se interessa —seu trabalho, diz ela, é se atentar a figuras negligenciadas.

"Vidas Rebeldes, Belos Experimentos", afinal, quer dar rosto às encrenqueiras anônimas, elogiar as mulheres que não se conformam. "Essas são as pessoas que dão os primeiros passos, que estão na linha de frente, que recusam leis injustas. São as anônimas que colocam seus corpos em risco para conquistar liberdade para todos nós."

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